Que acha ele disso?
Vou buscar a minha mãe para almoçar. Faço as perguntas do costume. Como correu a semana, o que pensa da abertura das aulas, em que escola está este ano o António, que livro anda a ler. Caminhamos na rua e a minha mãe cansa-se. Para a minha irmã, a minha mãe não se cansa. Não se cansa nem tem doença nenhuma. Se respira mais depressa é por ansiedade. Se tem hipertensão é óptimo, porque lhe chega mais sangue ao cérebro. Se não quer comer é excelente porque os gordos enchem as enfermarias dos hospitais. (Os gordos, os obesos estão na última linha do ranking de consideração social da minha irmã ). Com esta receita a minha mãe é praticamente imortal. A minha mãe conta coisas que se passaram em 1942 com a mesma certeza e abundância de pormenores com que relata as novas competências das crianças que a visitaram durante a semana. A ocupação actual da minha mãe é receber visitas: antigos alunos, familiares, colegas, electricistas . Tem saudade do senhor do Circulo de Leitores, das senhoras das missões, dos evangélicos do sétimo dia, do vizinho comunista. Houve um tempo em que a minha mãe descontava para as Enciclopédias, para os meninos angolanos, o Grémio, a Universidade popular, a Coimbra Activa, a Alta Não Pode Morrer, os Antigos Estudantes e a Festa do Avante. Agora está tudo decadente, diz a minha mãe. Para lhe provar que não é bem assim levo-a aos bairros novos. Ela emite opiniões. Tem opiniões sobre tudo. Se alguma doença a atingiu foi a saturação de informação. Lê jornais e revistas, assiste a debates. Está geralmente de acordo com o Miguel. Primeiro o Sousa Tavares, agora o Esteves Cardoso. Embora os distinga perfeitamente ela faz gala de não citar pessoas com três nomes. Diz : - Como escreveu o Miguel...Pausa. E nós sabemos que é o MST. Pausa maior se se trata do MEC. Houve tempos em que ela tinha um terceiro Miguel, o outro. Agora esqueceu-se dele, absolutamente desinteressada da vida parlamentar. Nos últimos anos eu tendo a discordar das opiniões da minha mãe. Ou dos maitres a penser da minha mãe. Ofereci-lhe um iMac de ecrã gigante para ela ler blogs, conhecer outros Migueis e, confesso, as minhas próprias opiniões. Ela encontrou o Facebook, entusiasmou-se uma semana até perceber que nenhuma menina do Liceu Nacional Infanta Dona Maria, da Quinta da Rainha ao Colégio de S. Bento, queria ser sua amiga .
Hoje, como sempre, a minha mãe dava opiniões sobre tudo e eu ia discordando dela, suavemente, para manter a conversa acesa, enquanto víamos a nova Brotero e o gourmet do Corte Inglês. E então apeteceu-me perguntar-lhe o que achava o meu pai daquilo. Sim, qual é a opinião do meu pai sobre aquele assunto. Há momentos assim. Rolamos devagar na cidade, não há frio nem calor, nem vento ou chuva, nem fome, angústia ou revolta e eu não a incomodo com os impostos a pagar. Há muito tempo que não há polícia que nos siga, ameace, prenda. Os meninos estão algures, a salvo. Não vai ser a Palestina a dividir-nos, hoje. Que diferença faz um tempo verbal. Que diferença faz um ano, uma década, um século. Debaixo do asfalto está a terra vermelha de Montarroio e a minha mãe sabe a resposta.
Etiquetas: passeios com a minha mãe
17 Comentários:
Fabuloso, Luís, fabuloso
passeei-me convosco... ouvi vosso respirar ora calmo ora ofegante, pensei-me com minha mãe e como ela diria que lhe doem as pernas mas que gosta muito da Biblioteca Joanina, depois que está a ler o Crime do Padre Amaro por querer saber se o que dizem as beatas de Amor é mesmo assim;
hoje vou deitar-me com alguns neurónios ainda bastante activos
posso hoje dormir melhor por ter vindo aqui, agora.
as mães (reais ou inventadas) são um problema insolúvel (para não falarmos dos pais)
-:)
Tão bom, tão de dentro. Felizmente há mães com filhos assim e vice-versa.
Fazem favor de parar com isso.
Fazes favor de continuar com a mesma qualidade a que nos habituaste... pelo menos
luís, quem se mete com as mães é no que dá
Os filhos assim, que bom tê-los...
Ainda bem que passei por aqui.
Simplesmente acolhedor, simplesmente real, simplesmente um "estar" familiar só nosso que se passeia entre palavras e silêncios só escutados e entendidos por nós, que fazemos e somos parte de.
Coisas simples...dogmaticamente as mais fascinantes e mágicas desta passagem nossa por cá.
Abraço
lindíssimo, luís.
MM
obrigado Luís. Hoje precisava de ler algo assim.
obrigado Luís. Hoje precisava de ler algo assim.
ui. magnífico.
abraço (e saudades)
Isabel
Parabéns pelo texto, e por teres voltado a escrever. Assim sim, vou voltar a ser leitora assídua do teu blog.
um beijo muito carinhoso para a sua mãe, que folgo continue tão lúcida como sempre, desta que sua aluna foi na instrução primária - e que nunca mais a esqueceu e que já foi, também ela, a casa da professora para recordar histórias e estórias.
Que delícia! E enquanto passeava contigo e com a tua mãe, trouxe também a minha. Ela também se cansa comigo... :)
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