15 novembro 2010

Relatos de Kolimá, de Varlam Chalamov



Varlam Chalamov (1907-1982) viveu uma vida impar, num século cruel. Prisioneiro do Gulag siberiano, em Kolimá, partilhou condições de detenção no limite da resistência humana e, felizmente, sobreviveu para contar. Alguns escreveram que, depois do Holocausto, a poesia era impossível. A poesia e todas as disciplinas criativas que transmitam qualquer ilusão sobre a existência de um princípio moral que, mesmo de forma mitigada, governe as vidas humanas. Quando leio Relatos de Kolimá alguns amigos olham-me com uma expressão onde adivinho tédio, preocupação, reticências. Tédio porque eles sabem tudo sobre a destruição a que se entregaram os avós e a memória do holocausto, como a do Gulag, são hoje instrumentos de luta ideológica e politica. Preocupação por temerem que me ponha a ler excertos, prosélito insuportável. Reticências sobre a qualidade literária de textos de denúncia.
Relatos de Kolimá, um pequeno livro da Relógio D’Àgua de 2000 e que, em Espanha, a editorial minúscula, de Barcelona, edita em 6 tomos, é um livro sobre os homens em situação extrema. Sobre a forma como os homens se comportaram, num tempo em que razão, solidariedade e justiça pareciam suspensas e o que contava era saber resistir à fome, à sede, ao frio, à doença e sobretudo à maldade e à banalidade do mal.
A escrita é poderosa, seca, pobre de adjectivos. A realidade descrita é tão brutal que só um absoluto despojamento narrativo podia torná-la suportável.
Os relatos de Kolimá são uma obra fantástica da literatura russa, um fresco de personagens multifacetadas procurando sobreviver . É também uma narrativa difícil de ignorar. Foi possível, sim, delicados amigos humanistas, gentis amigos que conservais as mãos tão puras. Eu sei que virá o claro dia e que toda esta gente já morreu, as vítimas e os algozes, se os houve, pois todos cumpriam ordens, nada sabiam, nem viam ou cheiravam. E sei que uma ideologia não pode ser culpada se alguns a usaram para justificar a velha exploração de uns homens pelos outros. Mas esta ideologia da classe messiânica, da classe contra classe, do partido de classe, da vanguarda iluminada, vinha mesmo a calhar. E Kolimá existiu entre o final dos anos 20 e o início dos anos 60. Nos campos de Kolimá, em temperaturas de Inverno sempre inferiores a -10ºC e muitas vezes a -30ºC, trabalharam na exploração mineira milhares de “inimigos do povo”, enviados sem julgamento ou com processos sumários, para os campos de trabalho, em viagens que podiam durar 3 meses. Eram entregues ao frio e à fome, à violência dos prisioneiros de delito comum, dos guardas e do complexo sistema de regras do Gulag. A sociedade responsável por esta aberração queria construir um homem radicalmente novo. Como aconteceria anos mais tarde no Cambodja de Pol Pot ( a propósito ler um relato, também nas edições minúscula, da autoria de Denise Affonço, a que A.Muñoz Molina fez comovida alusão na Babelia de 31 de Outubro). Se hoje nos preocupamos com a fatalidade histórica que, em épocas de recessão económica, ressuscita a xenofobia e o racismo e , de Bruxelas a Moscovo reanima a estrema direita, é justo que se lembre também a vida destes homens. E que o mínimo que se deve exigir a alguns que temos ao nosso lado, por um princípio de coerência e para que o dialogo faça sentido, é, não já que furem os olhos como queria Kundera, mas que, ao menos, leiam Varlam Chalamov.

5 Comentários:

Blogger MM disse...

a banalidade do mal, sim.
há alguns anos, no canal arte, semprun e wiesel encontraram-se pela 1ª vez, embora ambos tivessem estado em buchenwald ao mesmo tempo. wiesel falou do mal absoluto. dizia: matar um milhão de crianças é o mal absoluto; matar uma criança é o mal absoluto.
depois, com as somálias e os balcãs e os tutsis e todos os que fomos esquecendo porque outros entretanto sucediam, o mal passou a sentar-se connosco à mesa da sala de jantar, a ser pano de fundo das conversas, as crianças cresciam no meio do mal que era lá longe, e começou a ouvir falar-se do mal menor, do mal necessário, que era um mal que não era bem mal,de tão justificado que estava pelos adjectivos.
e foi então que percebemos a urgência de ler.
MM

segunda-feira, novembro 15, 2010  
Blogger Carta a Garcia disse...

Caro Luís Januário,

Excelente.Fiz link para "A Carta a Garcia".Obrigado.Também por teres decidido seguir o blogue.
Abraço,
Osvaldo Castro

segunda-feira, novembro 15, 2010  
Blogger fallorca disse...

Obrigado pela sugestão, Luís

segunda-feira, novembro 15, 2010  
Blogger None disse...

Também agradeço a sugestão. Não conhecia. Tudo é pouco para não esquecer que nada está definitivamente adquirido.

segunda-feira, novembro 15, 2010  
Blogger Luis Eme disse...

um livro que pode ser uma boa prenda de natal, para quem finge passar ao lado do "cu do mundo"...

terça-feira, novembro 16, 2010  

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