06 abril 2011

A rapariga desfocada (2)

Nos primeiros anos da crise final um grupo de pessoas, quase todos homens, costumava acompanhar o fotógrafo Franz Lebensmittel nas suas deambulações pelas ruínas das cidades da fronteira. Um deles, de nome Joachim , era completamente desprovido de talento . Na primavera do terceiro ano, uma pastora do Mosteiro de C., precária de Estudos Psicopatológicos, juntou-se durante algum tempo ao grupo e aliciou as amigas, vendedeiras do mercado de C. Aos domingos, depois da eucaristia, as raparigas começaram a posar para o fotógrafo, primeiro nas ruínas do Banco Central, depois no edifício da Câmara, na linha do Norte após o encerramento da Ferroviária da República e finalmente nos blocos cirúrgicos desactivados do Centro Hospitalar Universitário de C.. Franz fotografava sobretudo a pastora mas a história simples que hoje queria contar não é a história de Franz , cujas fotografias ainda estão disponíveis no site combatente que ele criou e manteve ao longo dos anos da crise final.
O modelo de Joachim era uma rapariga magra que nunca sorria. Não sorrir fazia parte do contrato tácito entre os fotógrafos e as raparigas. As pessoas eram graves naqueles dias e os interiores esventrados dos edifícios, as paredes sangrando memórias, os silêncios quebrados pelo som lancinante dos alarmes convidavam os rostos à imobilidade, ao pudor por exprimir sentimentos que dissessem mais que a respiração daqueles lugares. Joachim esperava em silêncio que a rapariga sentisse o peso das salas, o frio dos mármores e depois disparava tentando captar as pequenas variações da cara dela, variações de uma tristeza absoluta, entre o vazio e o ar. Cansava-se depressa, como se, ao fim de poucos minutos, se tornasse interdito o registo de um rosto que a lente tornava demasiado próximo. Porém, quando ao fim do dia observava as imagens, apercebia-se de que a rapariga estava desfocada. Era como se a lente tivesse procurado outro motivo na sala, se tivesse distraído do rosto dela ou, por timidez, se fixasse na cadeira, no estuque dos tetos, nos veios do mármore que revestia as salas. (continua)

Etiquetas:

0 Comentários:

Enviar um comentário

Subscrever Enviar feedback [Atom]

<< Página inicial