O Coelho Branco
Costumávamos sentar-nos naquela mesa do fundo do café à hora em que aparecia o Coelho Branco. Não, não era bem assim. Era na esplanada, quando estava sol e a decisão de ir à aula da tarde enfraquecia. Nada disso, foi só uma vez, na Senhora da Fraga, ao fim do dia, quando nos sentámos os três a ver as escarpas que se abriam sobre o rio Côa. Sei, porque guardo a fotografia. Estás lá tu, de cara afogueada e o nosso guia a consultar os mapas. Devia ter-te beijado nessa hora, em que os beijos faziam o coração pulsar a 170 e nenhuma ave nos distraía. Talvez te tenha beijado. Os teus olhos , o modo como me sentava e o alheamento do nosso guia anunciavam qualquer coisa. Ou foi quando me levantei para ver os cavalos selvagens, semi selvagens sim, e o nosso guia dobrou o mapa e te abraçou, tão inesperadamente que não podias senão corresponder àquele avanço. Aliás, se te debatesses despenhavas-te, e tu nessa altura tinhas, mas nem sempre, eu sei, uma vertigem que surgia nas mais inesperadas situações e uma noite te fez cair nas galerias do velho Convento , quando o adaptaram a enfermaria, durante a epidemia da cólera que assinalou o regresso das doenças quase extintas. Esperávamos pelo Coelho Branco. O do Carrol claro, nas velhas ilustrações , um coelho vitoriano de fato e colete, zangado sabe-se lá com quê, um coelho que a miúda nos anunciara inesperadamente no fim de uma consulta. Não, não foi assim. A menina tinha três anos e não parava de falar da Rainha do Cocas. E de repente perguntou-me:
- Não tens medo do... Coelho Branco?
Ou simplesmente:
- E o... Coelho Branco?- e era a entoação, o modo como ficou quieta esperando a minha reação , que mostravam o medo que ela tinha do Coelho Branco
- O Coelho Branco aparece e desaparece muito depressa - explicou a mãe da miúda. Ou o pai, enquanto a mãe sorria. E tu entraste nessa altura no gabinete, procuravas a lâmpada frontal, ouviste a parte final da frase e sem interromper a tua busca disseste com voz de Gato das Botas:
- O Coelho Branco já vai sair. Só está à procura de uma lâmpada que alguém levou do meu gabinete.
A miúda fingiu que se assustava:
- Brrr, o Coelho Branco- disse ela.
- Brrrrr, o Gato das Botas- disseste tu.
E foi a partir desse dia que passámos a esperar o Coelho Branco no café, naquela mesa que estava sempre reservada aos viteloni, por desistência tácita dos estudantes mais normais, ou na esplanada, se fazia sol, ou na praia de S. Martinho, quando começava o bom tempo, ou nas escarpas da Senhora da Fraga , onde eu, ou foi o nosso guia, inesperadamente te beijei, meu Gato das Botas, a saudade que eu tenho de te beijar assim?
6 Comentários:
Que bonito!
~CC~
muito bom!
Obrigado CCF, Graça e Isabel L.
Muito bonito, mesmo!
Obrigado Ana Cristina.
"Costumávamos sentar-nos" soa-me muito mal.
O coelho branco é orl?
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