Quando desaparecemos (Para o João Paulo Conceição.)
Fotografia de uma criança em Chicago.
Publicado no jornal i de 24 de novembro de 2011. No i de hoje ler A rapariga da caixa 7
Por vezes algumas pessoas simpáticas aproximam-se revelando a sua condição de leitores. Quase sempre me dizem, de várias formas delicadas, que não gostam do que escrevo. A mais comum é insinuarem que ficam afogadas em citações e que gostariam de me ouvir sobre algo que fosse verdadeiramente meu. Ora aquilo a que chamam citações são referências. As minhas são literárias. Mesmo as que não são literárias, só são susceptíveis de ser transmitidas através da escrita. Eu não falo com eles, não componho música, não pinto nem faço fotografias que possam transmitir o terreno comum que tento criar nos textos que escrevo.
O que durante anos me levou a escrever foi desencadeado por livros. Não há, para mim, uma vida decente separada da literatura. A semana passada ouvi uma escritora chamada Dulce Maria Cardoso. Cresceu em África, de onde foi expulsa aos 11 anos, tendo-se exilado em Portugal. Apesar de ter passado por grandes provações é hoje uma mulher serena e obviamente muito interessante. Na entrevista, sempre que lhe era permitido, dizia coisas importantes, sobretudo pela forma bem estruturada como o fazia. Viveu numa capital colonial, numa época em que os brancos começaram a desaparecer sem que ninguém parecesse dar conta. Depois numa aldeia miserável da metrópole, finalmente em Cascais, onde, durante um ano, uma professora a tratou sempre como a retornada. O que lhe permitiu sobreviver sem sequelas foi a construção de uma personagem literária, ela própria, a quem iam acontecendo aquelas coisas desagradáveis. A pior existência torna-se tolerável se nos virmos como uma persona, que um dia será tão estimada como David Copperfield ou Jane Eyre. Mas esta operação, o método de Dulce, envolve uma dificuldade. É preciso ter lido algum autor, como Dickens ou as irmãs Brontë. É preciso ter lido. Na biblioteca itinerante da Gulbenkian ou na biblioteca municipal de uma aldeia obscura de Trás- -os-Montes. Livros grandes, como preferia a Dulce, que durassem uma semana ou toda a quinzena da requisição, até ao regresso da esplendorosa viatura com portas de estribos, faróis como olhos perscrutantes, abrindo-se pela retaguarda como uma baleia invertida e revelando estantes laterais por dentro da chapa ondulada.
Hoje convoco três referências para uma crónica que é como um quarto de cuidados paliativos. Tony Judt, que no “Chalet da Memória” escreveu: “Passei muito tempo sentado na margem do rio de Putney, a pensar, embora não me lembre em quê”; os Radiohead de How to disappear completely: “That there, that’s not me /I go where I please/ I walk through walls/ I float down the Liffey”; e um dos últimos livros do Planeta Tangerina, que pergunta Para onde vamos quando desaparecemos, uma história de Isabel Minhós Martins ilustrada pela Madalena Matoso.
Deixo os rios. Mais depressa me via no rio que William Blake, em “Dead Man”, desceu com Ninguém. Começo e acabo neste livro. As cores fundamentais da capa são duas: uma é ciano escuro, da faixa verde – azul do espectro, e a outra é sua complementar, quase o vermelho puro de Rodchenko. Nas mãos de Madalena Matoso podem ser o oceano, um rio, um campo cultivado, as camisolas dos pescadores, o tronco de uma árvore ou o perfil aguçado das cumeadas. Há depois uma linha preta, que no início parece uma estrada a atravessar as páginas, depois os cascos de barcos num mar revolto, a seguir os ramos das árvores no Inverno, uma rede viária e finalmente ambas as coisas e todas as coisas. As perguntas são as mais difíceis, mas feitas sem ênfase dramática nem a enjoativa infantilidade dos psicólogos dos afectos, frisando que há sempre mais possibilidades. Aí adensa-se o novelo das linhas, confundem-se os percursos e as copas das árvores e um rio-estrada mergulha num lago – bosque, enquanto uma casa se levanta como uma torre frestada.
Quase no centro do livro, um casal que não saiu para dançar dorme, mas no sono compõe um pezinho de dança. É então que o texto ironiza: “ Melhor que nada.”
O que faremos quando desaparecemos é igualmente a indagação central da obra de Vila-Matas, ela também construída pela sobreposição de referências, numa rede tão cerrada que, se as anotarmos, contaremos centenas, de Montaigne a Joseph Roth. Eu sou como a Dulce, embora a minha vida não tenha sido tão atribulada nem tão marcada a minha exclusão. Nos momentos mais graves – duas prisões, o incêndio na casa de Azeitão, a perseguição do paranóico que namorara com a rapariga dos fanzines – era sempre a outro que as coisas sucediam. E esse outro era uma personagem, quase sempre literária. No início um poema épico, depois um roman fleuve, em seguida uma novela picaresca e mais tarde contos curtos, de um grande apaziguamento, com momentos de diversão.
Em “Youth: Scenes of Provincial Life II”, Coetzee, ou o juvenil narrador coetzeeano, escreveu que gostaria de ter ido para a cama com Emma Bovary e de ter ouvido o famoso cinto a assobiar, como uma cobra, quando ela o despia.
Queria, quando tiver alta desta enfermaria, ouvir o silvo do cinto de Emma Bovary, dançar enquanto durmo, de preferência com uma senhora de cabeleira de fogo, ou, vogando na canoa arranjada por Ninguém, ver o Tony Judt sentado na margem do rio a pensar em nada.
Etiquetas: João Paulo Conceição
7 Comentários:
sem os livros não se escreve...
agora relida, a mesma emoção.
Este texto está sublime. De escrita e encadeamento.
Como Dulce Cardoso, retornada...em parte salva pelos únicos caixotes que chegaram de Angola: a biblioteca do meu pai.
Traga-nos sempre livros.
~CC~
Sem os livros o que não há é forma de mostrar o paradoxo que é a festa dentro do vazio dentro do vazio.
(Vila-Matas, se bem me lembro)
Aqui vai um link que junta literatura e fotos, do "Liberation"
http://next.liberation.fr/arts/11011778-les-ecrivains-dans-l-objectif-de-gisele-freund
Espro q gostes
PM
PM, obrigado.
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