Blanche na Salpêtrière
publicado no jornal i , sábado, 3 de março.
A Academia, como era esperado, entregou os seus prémios a duas insignificâncias, dois filmes que tratam os adultos como crianças que não irão crescer. “Um Método Perigoso”, o filme de David Cronenberg com Keira Knightley no papel de Sabina Spielrein, a doente de Jung, curiosamente passado numa época não muito distante da das fitas galardoadas, tinha pelo menos uma vantagem temática. Debruçava-se sobre coisas sérias: a relação médico-doente, a histeria e o amor das mulheres. O cenário de “Um Método Perigoso” é a Suíça dos doentes abastados. Mas o espectáculo tinha atingido a máxima cintilação alguns anos antes em Paris.
Aí, no final do século xix, Blanche Wittmann fora a “rainha das histéricas”. Internada na Salpêtrière e peça central das aulas semanais de Charcot, a vida de Blanche foi descrita em dois livros recentes. “Blanche e Marie”, de Per Olov Enquist (2004), e “As Musas dos Médicos”, de Asti Hustvedt (2011).
Aos 18 anos, Blanche entrou na Salpêtrière, quando o velho asilo era já um moderno hospital, tinha 4500 camas e uma taxa de ocupação de 135%. Charcot, que lá fundou a moderna neurologia, tinha criado em 1881 uma cadeira de Clínica de Doenças Neurológicas. Uma das suas áreas de investigação era a histeria. Na Salpêtrière, Blanche cruzou-se com a encantadora Augustine e com Jane, uma rapariga cujo nome artístico viria a ser Jane Avril. Pouco tempo depois do internamento de Blanche, Jane trocou a Salpêtrière por um novo palco, o Moulin Rouge, onde Toulouse-Lautrec a pintaria. Ao ter alta deixou o terreno aberto à nova estrela.
O hospital internava velhas loucas. Mas não foi isso que o celebrizou. Um número considerável de mulheres eram neurasténicas, “epilépticas” e histéricas, “a classe superior deste inferno da melancolia”. Estas mulheres ocupavam um lugar central no Hospital. Separadas das loucas mais desinteressantes, estavam instaladas no rés-do- -chão, na Sala Duquesa de Bolonha, onde preparavam a maquilhagem, as almofadas, as joelheiras e os cenários. As vedetas principais desta espalhafatosa exibição eram mulheres que praticaram de forma sublime um conjunto de acrobacias, torções, contracturas, atitudes tónicas que atingiam o seu clímax na posição de opistótonus (a posição arqueada em que o corpo fica apoiado apenas na nuca e na ponta dos pés, “durante cerca de um minuto, após o que a doente cai pesadamente na cama”), revulsão ocular, gritos guturais, catalepsia, adormecimento, movimentos de língua, poses plásticas a fazer lembrar o êxtase religioso, imagens vívidas e alucinações, o globo histérico subindo e descendo no esófago, palpitações, cegueira para as cores (acromatopsia), hiperestesia ovárica e de outras zonas histerogénicas (pontos do corpo que, pressionados, podiam desencadear ou parar as crises), perda de sensibilidade, dermografismo...
Algumas destas palavras são de Jane Avril. Ou de Blanche. Ou dos médicos, cientistas ou investigadores que criaram as neurociências.
O produtor principal do grande espectáculo da Salpêtrière foi Charcot. Filho de um carroceiro, simpatizante da Comuna, inventou a histeria, uma das doenças da Belle Époque, o seu lado negro e um produto das instituições médicas de vanguarda dessa época, o contributo delas para a compreensão das mulheres numa época em que a repressão sexual obrigou a feminilidade a exprimir-se com uma invulgar plasticidade.
O Serviço Fotográfico, dirigido por Bourneville desde 1875, teve, a par das sessões clínicas semanais, um papel de destaque na criação da histeria; depois do desenho e melhor que o desenho, a fotografia desempenhou um papel insubstituível na fixação e na divulgação dos sintomas, na criação de uma nosografia própria, numa representação da doença de acordo com a teoria.
O nascimento das neurociências resultou assim da cumplicidade entre mulheres e homens notáveis através de uma relação complexa, que se pretendia terapêutica e era profundamente patológica. Mas teve virtudes inestimáveis: mostrou como o objecto da investigação se aproxima do investigador e a certa altura lhe dá aquilo que ele pede, através de um jogo de punição e recompensa, de exclusão e cooptação, do qual os participantes são pouco conscientes. Os aparelhos tecnológicos da modernidade, no caso a fotografia, aparentando copiar e ilustrar a realidade, são de facto um instrumento da ilusão, uma rede de efeitos especiais que dá consistência e estrutura ao sistema de crenças que os utiliza.
Alguns anos depois, os surrealistas haveriam de perceber a representação histérica como obra de arte. Trinta anos antes do movimento surrealist, Frederic Myers, presidente da Sociedade da Investigação Física, escreveu: Blanche realizava a tríade típica de letargia, catalepsia e sonambulismo com uma maravilhosa precisão.
Etiquetas: publicado no i em 3 de Março
1 Comentários:
primeiro leio no i, depois venho aqui ver a fotografia
Enviar um comentário
Subscrever Enviar feedback [Atom]
<< Página inicial