02 abril 2012

O livro de Renata




publicado no jornal i, sábado 30 de março de 2012

Quando chove forte, as águas arrastam as terras e às vezes levam as casas, na enxurrada. Na bonança notam-se os estragos. Vê-se um corte numa colina e percebe-se que a terra que recobre as rochas é afinal uma fina camada que, por vezes, nem um metro tem de profundidade.
À incapacidade de ver as transformações lentas que se operam no tempo da nossa vida chamam alguns a amnésia da paisagem ou “the creeping normalcy”. Jared Diamond conta que em Montana, no Verão, os fazendeiros não se lembram já das neves no horizonte. Mas ele, que em jovem lá passava as férias, percebeu a mudança da paisagem quando, quarenta anos depois, lá voltou. Para ele era notório que, em quatro décadas apenas, deixara de haver neves eternas. Os locais não se tinham apercebido e, quando interrogados, negaram. Um olhar estranho é sempre necessário. Quando tinha vinte anos, um amigo vindo da emigração entrou em minha casa e ao ver a minha biblioteca, não conseguiu ocultar um esgar de espanto e superioridade. Os meus livros eram uma tralha sem préstimo. Anos mais tarde tentei doá-los ao clube do bairro e recusaram-nos, educadamente. Acabei por despejá-los no alçapão que a Igreja dos Olivais conservou até há alguns anos, uma roda para livros e outros objectos abandonados. A minha terceira biblioteca está encaixotada há mais de um ano, juntamente com os salvados dos fogos de então. Não tenho necessidade de nenhum dos livros que julguei serem mais importantes do que calças ou sapatos. Precisamos afinal de muito pouco. E do que precisamos, sobretudo, é de um olhar estranho, de alguém que venha de outro lado, coma outros frutos, conheça outras paragens, outras aves, outros instrumentos, tenha acordado debaixo de outro sol, cozinhe com outros ingredientes. O talento, a inteligência, a visão poética do mundo , o que chamavam de romantismo, o humor, a criatividade são contagiosos. Infelizmente a maldade, a cupidez, a grosseria,
a ignorância, a brutalidade e a violência também são. Experimentem ir a um jogo de futebol, integrados numa claque de fanáticos. Ou a um congresso partidário. Ou ao Queimódromo. Não é chão onde cresça a ternura. Visitem, mesmo sozinhos, uma boa exposição de fotografia. Como a que o colectivo Cia de Foto, de São Paulo, fez sobre as pessoas na sombra, ou Duarte Amaral Netto sobre o doutor Z. de Coimbra, estagiário de cirurgia maxilo facial na Alemanha dos anos trinta (BES Photo 2012, até 27/05 no Museu Coleção Berardo) . No fim da visita não vos apetece a guerra. E, como ao ler um livro de Stendhal, ou ao ver um filme de David Lynch, tem-se a ilusão de partilhar um pouco daquela graça. Parece possível ser criador, poeta, pintor. Produtor de imagens. O vosso sistema nervoso central sincronizou com uma linhagem infinita de humanos, hominídeos e outros variados seres com os quais partilhamos os genes, a organização da matéria a que chamamos genes, e que nos permitem habitar o mundo, criar dele uma imagem operacional e sobreviver como for possível. A essa continuidade com as coisas, a esse devaneio produtivo, chamamos felicidade, ou outra coisa.
Renata sempre teve dons especiais . Mas agora escreve poemas, como outros pintam, cozinham ou plantam os arbustos de cujas bagas se faz o cassis. Tendo filhos a crescer, estes espantaram-se com uma nova mãe poeta. Leram e perceberam. Mas o espanto persistiu. Habituados a uma mãe consumidora, assustaram-se ao vê-la partir para outro lugar. Ou temeram a exposição que daí resultaria.
Ela própria, terminada a euforia da primeira onda criativa, e depois de reunidas as provas, se assustou. O que fazer daquelas folhas? Podia mostrar ao marido . Mas teve medo que este, ágrafo desde a tese de doutoramento, sentisse como uma exibição, ou uma ameaça, a sua súbita produtividade. Concorrer a um prémio literário? Entregar- se a uma editora? A criação doeu-lhe como uma ferida durante o tempo em que encheu o ecrã e depois ardeu como febre à medida que ia imprimindo e corrigindo. E
agora não sente estranheza nem vergonha, nem orgulho nem desprendimento. Duvida que alguma vez tenha um leitor que a compreenda. Tem vergonha da sua diferença, assim a nu.
Eu digo-lhe que não interessa quantos leitores vai ter. Um anónimo encontrará o seu livro e sentir-se-á melhor, mais próximo da terra, do ar e dos elementos, mais completo, mais rico e mais feliz. Isso durará um momento . Renata saberá, ou não. Mesmo que saiba, esquecerá. Escreverá ainda palavras melhores e mais certeiras, mais leves e limpas, mais coloridas . E depois calar-se-á. E será esquecida. E depois nada. Álvaro de Campos já disse isto, muito mais bem dito. E podíamos não ter lido.

3 Comentários:

Blogger alexandra g. disse...

não é só a escrita, é também a fala; dizer as coisas, dizê-las olhos nos olhos em vez de rumo ao móvel ali, à floreira além.

as palavras só ferem quem se deixa ferir, ou de facto está muitíssimo mais vulnerável do que alguma vez pensou estar; se não ferem, é porque o pensamento actua.

(podia não estar a escrever isto, de tal modo o gajo da foto é parecido com aquele que foi o meu pai, embora sem a pose ninja de merda).

segunda-feira, abril 02, 2012  
Blogger alexandra g. disse...

E Luís,
onde estão os teus poemas que não conhecemos?

quarta-feira, abril 04, 2012  
Blogger CCF disse...

Voam por aí os poemas da Renata, de todas as Renatas que no segredo dos seus cadernos escrevem para si próprias. Que bom saber delas.
~CC~

sexta-feira, abril 06, 2012  

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