Os Vingadores
Cada coisa é agora o exagero de si própria. O modelo parece ser o wrestling profissional onde as regras são desconhecidas do público, tal como as formas de comunicação entre os contendores. Mas os resultados são combinados e provavelmente a maior parte dos golpes e a sua sequência. O vilão é muito mau. Os golpes magoam imenso. O árbitro é corrupto e interfere descaradamente nas decisões. Em alguns dos desportos mais sujeitos aos cânones do espectáculo, entre os quais se destaca o futebol, o contágio do wrestling profissional americano é evidente. Quando derrubados, ou, na linguagem da especialidade, “ao sentir o contacto de um adversário”, os jogadores rebolam na relva, soltam gritos de dor lancinante, ampliados pela turba e pelos grandes planos das imagens televisivas. Estas técnicas de simulação e ludíbrio destinam-se a “arrancar” uma falta e a punir ou mesmo provocar a expulsão de um opositor. Quando resultam, são consideradas pela crítica independente como um feito do jogador e tão apreciadas como um golo. O recurso à imagem lenta e o aumento do número de fiscais de campo ou o aperfeiçoamento da sua formação, não diminuiu a fraude, antes a tornou mais exigente e objeto de treino específico. O canal francês TV5 passa um programa semanal de entrevistas a actores e comediantes que decorre num cenário modestíssimo. Em contraste , o responsável, vestido e penteado como o mr . Steed dos Vingadores (série de culto dos anos 60), pisca os olhos para a câmara numa pose de afectação queer. Os entrevistados ignoram e adoptam o registo sério da cultura oficial, o que gera no espectador um efeito de perplexidade. O comportamento dos entrevistados nos inquéritos de rua e nos participantes dos fora promovidos por algumas estações de rádio possui também um ambiente de exaltação cujos efeitos são semelhantes aos do teatro brechtiano. É como se a indignação fosse encenada e se desse a conhecer como tal, para criar na audiência um saudável efeito de distanciação. Foi neste contexto que surgiram os Homens na Luta, uma paródia equívoca da indignação popular, um canto ao lado do canto, contaminando de tal forma o protesto que, quando ele surge, já não sabemos quem é quem. O serviço de ordem da CGTP ou o seu arremedo. A nossa dívida é em milhares de milhões. Os juros a 10%. Os impostos a 50%. Os ricos são escandalosamente ricos e os miseráveis desdentados. Os sacanas abatem sobreiros, plátanos, oliveiras milenares e fogem com o metro Mondego, o TGV, o aeroporto da Ota, o tratado de Lisboa, a Segurança Social, o Hospital de Todos os Santos, a ponte sobre o rio Kway, a mais valia e os dividendos. O governo eleito pelos colaboracionistas diz: é assim que tem de ser e não há outra maneira. E outra vez se ouve que será assim nos próximos mil anos. Os bons alunos têm média de 19,90 valores, tomam ritalina para competir com os que têm 19,95 e no fim do curso vão pedir emprego ao Horácio, que andou na Jota com o Pedro e é um gajo porreiro. O CR7 e o Messi já marcaram 40 golos. Os vinhos têm 15 graus. Um rapaz imolou-se numa praça de Tunes e do fumo do seu corpo nasceu uma revolução. Um ano depois um velho deu um tiro no céu da boca face ao Parlamento grego e teve direito a um funeral cheio de emoção. O modo hiperbólico estendeu-se a todos os aspectos da vida contemporânea. O pronto a vestir para consumo geral é agora superlativo: saltos ainda mais altos criando uma marcha desequilibrada, calções tão curtos que miniaturizaram as meias e a lingerie, saias que insuflaram as ancas, decotes de apneia prolongada, cortes de cabelo declarativos, imperativos e pouco imaginativos, rendas, transparências. Nada que as cortes barrocas não tivessem conhecido, mas agora na HM e na Zara. Tudo fantástico, extravagante, grotesco, hiperbólico, superlativo, burlesco. Mas tudo comédia, farsa, arremedo. Quando tudo se tornou explícito apercebemo-nos de que o mistério continua e , em algum lado, os dados voltaram a ser lançados. publicado no i a 21 de abril de 2012
2 Comentários:
O desafio é perceber quando o texto dobra o momento em que deixa o delírio esticar-se e inundar o raciocínio estruturado. Nessa altura ganha dimensão literária, mas manterá acutilância crítica? Ou simplesmente restringe o público a uma minoria iluminada?
Eu gosto ...
Jarra, obrigado pelo comentário. Nunca quis ter muito público. Nem muita luz, também. Abraço
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