02 junho 2012

Uma teoria fragmentária do amor


publicado no jornal i
Em “O Dr.K. vai a banhos em Riva” Sebald relata que em Riva, num tratamento termal, Kafka ttavou conhecimento com uma rapariga suíça “com ar muito italiano”. Passam juntos a tarde, no lago de Garda, frente às paredes rochosas. Então, segundo Sebald, o dr. K. desenvolve” uma teoria fragmentária do amor sem corpo em que não há qualquer diferença entre proximidade e ausência”. O sexo perturba as relações entre os seres humanos. Em Riva de Garda o Dr K. explica a sua teoria a uma jovem que… estar próximo, tão próximo quanto se pode estar de uma bela mulher cuja aparência não revela a causa da sua presença em Riva e não deixar que essa proximidade separe perturbe tolde incomode manche a relação fundamental que se estabeleceu entre eles. Não permitir que nenhuma ilusão ,romântica , nenhuma atracão biológica, nenhum movimento dos corpos condicione, acelere, a relação que há-de estabelecer-se entre ambos, determinada apenas pela afinidade de pontos de vista, pelo apreço comum, pela graça que o sotaque, a sintaxe, a prosódia e o colorido das faces, o jeito do cabelo, ao forma como o corpo se mexe ao caminhar, a decisão a execução, o insight….. os aproximam . Perto um do outro, mas como dois seres humanos . Sem medo das palavras mas sem o constrangimento da cópula. E assim, longe, como amantes que mantêm um registo epistolar sem pressas, como se o tempo fosse eterno, não houvesse exércitos, incorporasses, movimentos de tropas nem as famílias recolhessem os haveres , as sementes, as mantas, as arcas e a forragem. O dr. K. pensa que pode passear pela margem do lago que vai de Riva para o sul com a rapariga que parece italiana. E é isso que faz. Como tinha decidido estabelecer com ela uma relação de onde estivesse arredada a sedução verbaliza as suas emoções, sem censura. A sua intenção é deixar claro, a cada momento que não pretende impressioná-la, compor um personagem diferente do que se julga. Ao passar pelo Hotel Europa cruzam com o militar russo na reforma que é vizinho de mesa no Lido Palace. Ele parece surpreendido por vê-los juntos. A rapariga saúda-o com simpatia. O dr. K deixa passar algum tempo e comenta que o russo não mostrou muito entusiasmo com o encontro : - Talvez ele não tivesse gostado de ser reconhecido - disse . E olhando para a vidraça do salão do Hotel Europa viu um vulto fugidio atrás do reposteiro. À medida que caminham o dr K. torna-se loquaz. Sobem na direcção da torre Bastione . Foi outrora, no domínio de Veneza, um bastião inexpugnável de defesa da povoação. - E depois um paiol - comentou a rapariga. Ele pareceu surpreender-se. - Porquê um paiol? - Todas as construções, nas colinas das cidades com história, foram, num momento de declínio, degradadas por ocupantes sem maneiras. – disse ela, com ênfase forçado, como se recitasse. Riram-se. O dr. K. apreciou a forma como ela se ria. Estava frio e ele quis imprimir mais vigor aos seus passos. O declive era grande, começou a suar e ela ultrapassou-o com facilidade. Passaram a linha da última casa. De uma chaminé saía um fumo branco que demorava a dissipar-se. A partir desse momento só havia a vegetação, a parede quase a pique do Monte Rochetta e as ruínas da torre clara, arredondada. Lá em baixo, no lago, em frente do Hotel Europa, o barco com destino a Desenzano apitou no cais, duas vezes. Do Hotel saíram três pessoas, apressadas, arrastando malas. A italiana caminhava agora à frente. Misturava palavras simples, desconhecidas do dr K. e que eram provavelmente os nomes das flores que colhia, dos arbustos em que ia tocando com graciosidade. E também nomes guerreiros, sonantes. Dizia-os em voz alta, cantarolada. Caminhava depressa, por vezes quase em desequilíbrio, bordejando o lado do trilho que se abria ao lago. O dr K. estava cansado. Ouvia…. Mas continuava a caminhar. Sabia que ao chegar ao estariam sozinhos. O sol de Março rompeu uma fresta de nuvens atrás dos montes brancos de … Ela voltou-se na sua direcção e ele viu-lhe a silhueta. E estava calmo embora o coração batesse tão alto que era quase um escândalo a forma como soava, nos seus ouvidos e no ar rarefeito da colina. Não haveria a obrigação e a confusão do sexo.

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