Dois Leopardos e Alguns silêncios
Anselm Kiefer
publicado no i , suplemento LiV, a 28 de julho de 2012
Desconheço qual foi o mais pequeno poema que até agora se escreveu em língua portuguesa. Em 1962, Alexandre O’Neill aproximou-se da perfeição com um poema a que chamou Jorge. Era assim:
“Podes vir./ Mamã, enfim, morta”.
Anos antes, um neo-realista ganhara alguma celebridade ao escrever Viagem aos mares do Sul. Tinha um só verso:” Eu não fui lá”.
Agora foi Manuel de Freitas, que já antes antologiara Bardamerda, um autor cujo nome torna qualquer texto supérfluo, quem deu o seu contributo. Em Jukebox 3, edição do Teatro de Vila Real, Freitas escreve dois versos:
“Um dia, felizmente/ Ninguém se vai lembrar deste nome”.
Título do poema: Cavaco Silva, 2011.
Igualmente em Abril, a Black Sun editou mais um número da revista de poesia e luxúria com o nome de Piolho. Miguel Martins escreve o poema sem título onde, em seis palavras, nos garante que o fazem
“ ... ao relento/Lentamente/.../ Relentamente”.
A entrada no Museu do Quai Branly, em Paris, faz-se através de um rio de palavras que escorrem pela rampa através da qual se ascende ao andar principal das exposições, uma instalação da autoria de Charles Sandison. Palavras sem nexo aparente, um caudal de letras, sílabas, palavras que se sobrepôem, pequenas frases. Ninguém as sabe ler, pronunciar, juntar. Escorrem pelo chão, curvam num trecho do percurso, sobrepoem-se em baixo na planura do hall de entrada.
Um dos blogues mais interessantes deste ano tem vindo a ser construído por M. de Campos (lescahiersdelamariée.blogspot.com). Através de uma entrada periódica, um pequeno poema com título, M. de Campos constrói uma persona: mulher, mãe, prostituta, batida, humilhada, incapaz de educar o cão, como antes os filhos. Os posts tendem a ser cada vez mais curtos, a linguagem cada vez mais depurada, escasseiam as palavras. Quase que diz, com Vila-Matas: só falta calar-me. No último dos espelhos sucessivos, justamente intitulado de Mise en abîme, constata desoladamente que “Não se reconhecia na fotografia”. Cinco palavras.
A degradação do espaço público criou um movimento de recuo para o corpo. Não são precisas agora muitas palavras. As palavras que existem não servem. São as palavras da nova Língua do Imperio com as quais se exprime o grupo no poder neste país. Horários zero, para dizer desemprego. Reajustar, em vez de destruir. Sustentabilidade, significando falencia a prazo. Redimensionar, antes de encerrar. E estranhamente, como um verme cúmplice na rosa putrefacta, atestando que nem tudo está previsto, a palavra resgate.
Poucas palavras fazem agora sentido. Viramo-nos para o corpo, a cruzeta ambulante da nossa história, quase sempre com melancolia. Ah, mas é preciso gostar dessa pele, desse coração que talvez cometa ainda uma proeza insuspeita, da mão que há-de segurar a pedra, do corpo que aspira secretamente à sua glória.
Não precisamos de muitas palavras, Carminho e eu, para nos entendermos. Já nos interrogámos sobre tantas coisas. E percebemos algumas. Estas férias, por uma sucessão de felizes acasos tivemos acesso às duas traduções de O Leopardo, o mítico livro de G. Tomasi di Lampedusa.Esta abundancia de meios permitiu a partilha em silêncio, cheio de conteúdos, como se assistíssemos a um filme. Sem combinação prévia, as capas, amaldiçoadas pelo gosto dos editores, fitam-se. Lemos a velocidades ligeiramente diferentes. Rimo-nos nas mesmas passagens, ela com alguns segundos de atraso, como os correspondentes do telejornal. Declamamos pequenos períodos mais eloquentes: a revolução burguesa subindo as escadas do palácio de Donnafugata, no fraque de corte ridículo de Don Calogero. Perguntamos ambos quem seria o poeta francês que escreveu os versos inquietantes que não largam a cabeça do príncipe Salinas ao regressar do assalto a Mariannina (Seigneur, donnez-moi la force et le courage/ de regarder mon coeur et mon corps sans dégout). Confrontamos as soluções dos tradutores, quando soam alarmes. Mas poucas vezes, porque ela não é dada a exercícios de tradução comparada, nem os textos são assim tão diferentes. E sobretudo porque Carminho gosta de acreditar que está a ler no original, o que é uma variante culta da ideia ingénua que alguns leitores têm de que só existe aquele texto. Tolstoi e Pamuk, Selma Lagerlof e Marguerite Duras, todos escreveram na mesma língua, por coincidência a língua mãe de Carminho. É uma atitude semelhante à dos que detestam ouvir a fisiologia do amor, como as crianças que se chocam quando um dia visitam as terras do interior e descobrem, com uma discreta náusea, que os peitos de frango parecem estar pendurados numa coisa viva que depenica o chão das capoeiras. Mas convém que não me afaste muito do relato desta visita conjunta e quase silenciosa ao Leopardo. Esta experiência de leitura é uma metáfora das nossas vidas. Se não houver sobressaltos havemos de atingir juntos o fim da história.
O Leopardo, G. Tomasi di Lampedusa, Teorema, tradução de José Colaço Barreiros, 2007 e ed. Visão, 2000, tradução de Maria Jorge Vilar de Figueiredo.
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