A minha noite em casa da Çi
Os outros que me perdoem mas o grupo mais interessante
estava no belvedere. O belvedere é
uma parte do jardim votada às ervas daninhas e ao vento Norte e foi aí que eles se foram sentar.
Andava de olho neles há algum tempo. Os rapazes de barbas hirsutas contrastando
com calvícies precoces . Um de
mãos cruzadas à frente dos joelhos como Dostoievsky na Galeria Tretyakov, o
outro, Paul Verlaine pintado por Courbet em 1871. Pergunto “ quem são vocês” e um terceiro, cujo perfil lembrava o de Zola retratado
por Manet em 1886, respondeu-me
como Joaquim Albergaria o fez
naquele momento histórico em que deixou os Vicious Five para criar os
Paus. Palavras dele, o rapaz cujo
perfil lembrava o de Zola retratado por Manet em 1886. E mais não adiantaram. Mas, estando Joaquim Albergaria no
Facebook é fácil saber qual foi a resposta que o celebrizou. Não foi nesse
momento de rotura, nem ao actuar
com Rita Garganta Laranja no Festival do Silêncio clamando que cada coisa havia
de ser “útil e reciclável”mas quando lhe perguntaram pelos livros preferidos, que o bateria siamesa retorquiu ( e a
resposta ficou no FB e na história) : “Não faço ideia”.
O grupo indie-rock (ou eram indie-folk?) era mais abordável. Quando passei por eles, Joana D’Arc, a
que canta tal Sharon Van Etten , disse, como se já soubesse ao que eu ia: “gostamos
de jantares caseiros, de bons
vinhos, de Anton Corbjin, do Salão Neurótico e da amizade genuína . “É pá, parece um Manifesto”, grunhiu o
cara de cão que faz dueto com a que canta tal Sharon Van Etten, e que, embora ela ainda não o saiba, lhe há-de
estragar a vida. “E nós não gostamos de Manifestos”, disse ainda. “Nem do Manifesto que assolou a
Europa?”, perguntei a medo. “Ó pá, isso foi quando? Aqui este pessoal não
conhece Manifesto anterior a 2012,
o ano em que Joaquim Albergaria cantou na Queima do Porto e declarou o seu amor
aos carrinhos de choque”, disse o cara de cão, que como se vê é muito novo e
simpatiza comigo. Ao ouvir esta fala, os clássicos russos do Belvedere, que conhecem
todos os Manifestos do passado e do que há-de vir, pararam de falar, viraram-se
num movimento síncrono e percebeu-se que uma união entre eles e os
indie- rock (ou eram indie- folk ?) começara ali a ser selada.
Os mais velhos estavam no jardim de acesso à cozinha,
onde a Çi, de ancas roliças, cozinhava um soberbo caril vegetariano, ou no
salão das cadeiras tresmalhadas,
em pequenos grupos junto às janelas.
No jardim de entrada, Nemão, de cabeça rapada, servia , em
jarro pesadíssimo, uma bebida de
limão açucarado e cachaça, cujo teor alcoólico era tão grande que o grupo já
mal conseguia levantar-se, exceptuando Nemão, de cabeça rapada, que servia. Na
cozinha, a Çi, de ancas roliças, era acolitada por Tristão, de longos cabelos, agora tão mudado e
Isolda, a que todos ansiavam conhecer. Recolhidos aos lugares mais sombrios,
pálidos, de uma brancura cérea, o par parecia convalescer de doença grave. “Se
isto é o amor, que um mal assim nunca nos atinja”, houve quem pensasse. Pois
aquele jovem, de longos cabelos, agora tão mudado, já sorriu e praguejou, fotografou as pradarias do norte e os
mares que os barcos aqueus
cruzaram. E hoje, que resta dele? Esquálido, não tem mãos que cheguem para a que parece desaparecer no
seu peito de Atrida, mancha branca na alvura do colete de linho. De vez em
quando mexe-se, oh não estão mortos. É para lhe pôr na boca umas sementes de
gogi, como fazem as fêmeas das aves aos nasciturnos.
Algumas mulheres destacam-se : a Russa, com olhos de plácida toura, Lady Ottoline, hoje com o cabelo preso na nuca e os
dedos longuíssimos enrolando uma mortalha, a deusa Clávia, de alvos braços, a mulher anoréctica de
vestido negro que entrou comigo e me devia proteger.
E homens também: Nemão, de cabeça rapada, que verteu discretamente um ácido no meu
prato de caril ,o engenheiro Neto,
André Bonirre, preparando incansavelmente a nova temporada, os gémeos
asa de corvo e suas acompanhantes trementes.
Procuro alguém para a segunda parte da noite em casa da
Çi, de ancas roliças. Quando as sobremesas acabarem e os mais velhos partirem
levando consigo os mais novos, o vinho escorrerá nos copos e o ar toldar-se-á
de fumos. No belvedere o grupo dos clássicos russos acenderá a metafórica fogueira. Joaquim Albergaria prometerá a todos:
“no
décimo ano saquearemos a cidade de amplas ruas” .
E na roda indie Joana d’Arc dançará frenética, enquanto
se ouve
“Let's find something that
can last.
Like cigarette ash”.
Caio numa cadeira e sinto as
forças a abandonarem-me. Vejo quase tudo, com visão periférica, agora desbotada.
Tal como vi verter o ácido no meu caril e apesar disso continuei a comer, para
não interferir no destino que Nemão, de cabeça rapada, me traçara. Que ironia,
acabar numa cadeira Mademoiselle, o modelo que Starck desenhou para a Kartell. Vejo
a mulher anoréctica de vestido negro distraída, à conversa com uma das acompanhantes
trementes. Lady Ottoline e Clávia,
de alvos braços, desaparecem atrás de um reposteiro. E é então que a Russa, com
olhos de plácida toura, se debruça sobre mim, tão discretamente que parece apenas
interessar-se sobre o meu estado e ouço-lhe dos lábios as palavras finais :“Como
deixámos acabar agosto?”
Ilíada, Homero, tradução de Frederico Lourenço.
Livros Cotovia, 2005
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