09 setembro 2012

A minha noite em casa da Çi





Os outros que me perdoem mas o grupo mais interessante estava no belvedere. O  belvedere é uma parte do jardim votada às ervas daninhas e ao vento Norte  e foi aí que eles se foram sentar. Andava de olho neles há algum tempo. Os rapazes de barbas hirsutas contrastando com calvícies precoces .  Um de mãos cruzadas à frente dos joelhos como Dostoievsky na Galeria Tretyakov, o outro, Paul Verlaine pintado por Courbet em 1871.  Pergunto “ quem são vocês” e um terceiro,  cujo perfil lembrava o de Zola retratado por Manet em 1886,  respondeu-me como Joaquim Albergaria o fez  naquele momento histórico em que deixou os Vicious Five para criar os Paus.  Palavras dele, o rapaz cujo perfil lembrava o de Zola retratado por Manet em 1886. E mais não adiantaram.  Mas, estando Joaquim Albergaria no Facebook é fácil saber qual foi a resposta que o celebrizou. Não foi nesse momento de rotura,  nem ao actuar com Rita Garganta Laranja no Festival do Silêncio clamando que cada coisa havia de ser “útil e reciclável”mas quando lhe perguntaram pelos livros preferidos,  que o bateria siamesa retorquiu ( e a resposta ficou no FB e na história) : “Não faço ideia”.
O grupo indie-rock (ou eram indie-folk?) era mais abordável.  Quando passei por eles, Joana D’Arc, a que canta tal Sharon Van Etten , disse, como se já soubesse ao que eu ia: “gostamos de jantares  caseiros, de bons vinhos, de Anton Corbjin, do Salão Neurótico e da amizade genuína  . “É pá, parece um Manifesto”, grunhiu o cara de cão que faz dueto com a que canta tal Sharon  Van Etten, e que, embora ela ainda não o saiba, lhe há-de estragar a vida. “E nós não gostamos de Manifestos”, disse ainda.  “Nem do Manifesto que assolou a Europa?”, perguntei a medo. “Ó pá, isso foi quando? Aqui este pessoal não conhece Manifesto  anterior a 2012, o ano em que Joaquim Albergaria cantou na Queima do Porto e declarou o seu amor aos carrinhos de choque”, disse o cara de cão, que como se vê é muito novo e simpatiza comigo. Ao ouvir esta fala, os clássicos russos do Belvedere,  que conhecem todos os Manifestos do passado e do que há-de vir, pararam de falar, viraram-se num movimento síncrono e percebeu-se que uma união entre eles e os indie- rock (ou eram indie- folk ?) começara ali a ser selada.
Os mais velhos estavam no jardim de acesso à cozinha, onde a Çi, de ancas roliças, cozinhava um soberbo caril vegetariano, ou no salão das cadeiras tresmalhadas,  em pequenos grupos junto às janelas.
No jardim de entrada, Nemão, de cabeça rapada, servia , em jarro pesadíssimo,  uma bebida de limão açucarado e cachaça, cujo teor alcoólico era tão grande que o grupo já mal conseguia levantar-se, exceptuando Nemão, de cabeça rapada, que servia. Na cozinha, a Çi, de ancas roliças, era acolitada por Tristão,  de longos cabelos, agora tão mudado e Isolda, a que todos ansiavam conhecer. Recolhidos aos lugares mais sombrios, pálidos, de uma brancura cérea, o par parecia convalescer de doença grave. “Se isto é o amor, que um mal assim nunca nos atinja”, houve quem pensasse. Pois aquele jovem, de longos cabelos, agora tão mudado, já sorriu e praguejou,  fotografou as pradarias do norte e os mares que os barcos aqueus  cruzaram. E hoje, que resta dele? Esquálido,  não tem mãos que cheguem para a que parece desaparecer no seu peito de Atrida, mancha branca na alvura do colete de linho. De vez em quando mexe-se, oh não estão mortos. É para lhe pôr na boca umas sementes de gogi, como fazem as fêmeas das aves aos nasciturnos.
Algumas mulheres destacam-se : a Russa,  com olhos de plácida toura, Lady Ottoline,  hoje com o cabelo preso na nuca e os dedos longuíssimos enrolando uma mortalha,  a deusa Clávia, de alvos braços, a mulher anoréctica de vestido negro que entrou comigo e me devia proteger.
E homens também: Nemão, de cabeça rapada,  que verteu discretamente um ácido no meu prato de caril ,o engenheiro Neto,  André Bonirre, preparando incansavelmente a nova temporada, os gémeos asa de corvo e suas acompanhantes trementes.
Procuro alguém para a segunda parte da noite em casa da Çi, de ancas roliças. Quando as sobremesas acabarem e os mais velhos partirem levando consigo os mais novos, o vinho escorrerá nos copos e o ar toldar-se-á de fumos. No belvedere o grupo dos clássicos russos  acenderá a metafórica fogueira. Joaquim Albergaria  prometerá a todos:
“no décimo ano saquearemos a cidade de amplas ruas” .
E na roda indie Joana d’Arc dançará frenética, enquanto se ouve
“Let's find something that can last.
Like cigarette ash”.
Caio numa cadeira e sinto as forças a abandonarem-me. Vejo quase tudo, com visão periférica, agora desbotada. Tal como vi verter o ácido no meu caril e apesar disso continuei a comer, para não interferir no destino que Nemão, de cabeça rapada, me traçara. Que ironia, acabar numa cadeira Mademoiselle, o modelo que Starck desenhou para a Kartell. Vejo a mulher anoréctica de vestido negro distraída, à conversa com uma das acompanhantes trementes. Lady Ottoline e  Clávia, de alvos braços, desaparecem atrás de um reposteiro. E é então que a Russa, com olhos de plácida toura, se debruça sobre mim, tão discretamente que parece apenas interessar-se sobre o meu estado e ouço-lhe dos lábios as palavras finais :“Como deixámos acabar agosto?”


Ilíada, Homero, tradução de Frederico Lourenço. Livros Cotovia, 2005



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