02 setembro 2012

A resposta de Gregers Werle






Como é que se começa uma crónica cujo tema é o fim? O fim de um ciclo. Se é verdade que demoramos a perceber que o nosso tempo está a mudar, então este não é o fim. Vivemos sempre, nas épocas de transição, um tempo equivocado. Já é outra coisa, outros os seus artífices reais. Mas como marionetas de um teatro em extinção, os figurantes do passado continuam em cena, assegurando que o que tem de ser feito será sem grande dor ou sacrifício. Ainda toca a música do passado, é a mesma a cal dos muros. Mas já tudo mudou. Se pudéssemos estar em todo o lado ao mesmo tempo teríamos percebido com antecipação. Alguns deram conta, de várias maneiras. Outros escreveram, mas não foram ouvidos. Há quem resista. E em alguns lugares há mesmo, contra ciclo, mudanças de sentido contrário. Mas no planeta em que a proximidade se tornou regra, as diferenças tendem a anular-se. Em breve estas serão as canções da nostalgia.
Há momentos reveladores. Para Elias Rukla, o professor de literatura norueguesa da Escola Secundária de Fagerborg, foi quando ouviu na sala de aula o suspiro de enfado de um aluno. Ou antes disso, quando se começou a “sentir ofendido porque os jornais e as televisões já não se dirigiam a ele”.  Já não lhe apetecia ler, os debates da televisão não tinham ninguém com quem realmente se identificasse. Sentia-se “à margem”, “fora do jogo”, e magoado por isso. Precisava de encontrar as pessoas diferentes. Alguém que, inesperadamente, uma manhã, lhe citasse Thomas Mann, como acontecera uma vez na sala de professores. Mas  “o espaço  público que uma conversa exige estava ocupado” .

A notícia de encerramento do serviço público de televisão diluiu-se no ruído de fundo da rebentação das ondas de agosto. Uma administradora do regime escreveu na sua página muito fresca do FB que “não estava disposta a pagar os prazeres culturais de 4%”. Elias  também pensou , no início, que o seu mal estar era o de uma minoria que não aceitava a sua derrota. E que era preciso ter a humildade necessária para continuar a acatar as regras da maioria, mesmo quando elas parecem absurdas.
Não se tratava de uma derrota mas sim de uma extinção. Um barco para a deportação, um campo de extermínio, uma câmara de gás, um gulag. Devemos aceitar o garrote em nome da democracia? Da vontade da maioria. Os touros de morte, a festa brava, a nossa marca cozida à blusa, o matadouro.
Outro momento revelador foi a última charla de Marcelo. Estava nervoso. Tinha feito algum trabalho de casa. Umas conversas com membros do governo, trocos que ainda lhe dão nos ministérios. Mas Judite de Sousa, antecipando-se, deu praticamente a mesma informação, ou contra informação e deixou-o no ar, sem apoio. Depois ela quis fazer uma evocação dos anos sessenta, a propósito da morte do astronauta Neil Armstrong. E ele, surpreendido, não brilhou. O seu mundo de infância também pereceu, mas isso era mais profundo do que ele podia admitir naquele momento. Sentiu a ferida da sua resposta medíocre e, em directo, começou a cansar-se de si mesmo. Ainda reagiu. Trazia uma recomendação oblíqua ao presidente e ao governo sobre os riscos da inconstitucionalidade da concessão e a habilidade para a contornar. O sorriso de contentamento e auto contemplação ainda lhe repuxou as comissuras dos lábios. Mas a jornalista interrogou-o brevemente sobre as suas contradições e ele não resistiu. A solução representa uma economia ? É possível o serviço público  de uma nação independente ser assegurado por capitais privados estrangeiros? Ele pode ser, sem esforço, a opinião da Quinta da Marinha, do barão do PSD, do professor da Faculdade de Direito. Mas é mais do que isso. É a consciência do centro, o grilo falante das famílias com confessor, farmacêutico e advogado e um dia, quiçá, o seu presidente. E fica ali, imobilizado entre os interesses de um governo cujo activismo o ultrapassa e a personagem contraditória que incarna. Foi doloroso ver o envelhecimento súbito do seu rosto, as repetições das suas frases outrora tão brilhantes, as pequenas gotas de suor na fronte, a imprecisão das asserções, a ecolália relativamente à jornalista.
A Elias Rukla não se lhe abriu o guarda-chuva.
Ele apenas pedira  a uma aluna que lesse o trecho fundamental de O Pato  Selvagem de Ibsen,  a resposta de Gregers Werle. Foi no pátio da Escola, junto ao bebedouro, depois do suspiro arrogante de  um rapaz, no momento em que começava a chover.


Pudor e Dignidade, Dag Solstad, tradução de Liliete Martins, edições Ahab


1 Comentários:

Blogger maria disse...

:)(o sorriso é para a escrita, porque o resto é uma tristeza)amsrtc

muito raramente vejo o marcelo, mas há muito que o pressinto como aqui foi brilhantemente descrito.

sábado, setembro 08, 2012  

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