A farsa neoténica e as mulheres grisalhas
A biologia evolucionista designa por neotenia a persistência de características juvenis ou infantis nos adultos de uma determinada espécie. Os olhos grandes, o rosto espalmado, a macrocefalia arredondada, a face e o corpo sem pelos são características neoténicas que, aparentemente de forma transcultural, são muito apreciadas pelos humanos e determinam as suas escolhas sexuais. Toda a cosmética de promessas, a cirurgia plástica, a moda no vestuário e nos adereços tenta criar corpos neoténicos, imponderáveis, lisos, prodigiosos, arredondados e alopécicos.
A cultura actual valoriza e incensa a juventude. Esta glorificação parece ser fundamental para a heteronormatividade que é suposto regular a atracção sexual nos encontros humanos .
As revistas do coração e os magazines distribuídos por Personal Trainers, a barragem de “ informação biomédica e de saúde”, os programas de televisão e os suplementos temáticos dos jornais são a caricatura desta neotenia babada, a todo o tempo recriando duas entidades complementares: uma de barbies impossíveis e rapazes de bicípetes bronzeados, anoréticas e cinturões negros, bulímicas e remadores; com uma geografia de lugares de culto que tem o Natal em SPWF e a Páscoa no quadrilátero de ouro de Milão. A outra entidade é um imenso campo de concentração, com piscinas para ginástica aquática, turismo de massas, programas de autoajuda e centros de dia. De um lado jovens de todas as idades, em permanente movimento, como os programas com duas fitas de legenda heterocrónica, criando o efeito de realidade multímoda e insignificante. Do outro lado o mundo silencioso dos desistentes, reformados e pensionistas. Nesta visão dicotómica o envelhecimento surge associado à perda final da bênção neoténica ou à sua irrisória deformação. Perda, deformidade, decrepitude, declínio, deterioração, lugar de ausência e de pobreza, o envelhecimento como construção política e ideológica arrasta para a invisibilidade milhões de seres humanos, sem valor para a produção nem para o comércio sexual ou, nos quais, manifestações residuais de sexualidade são vistas como sinal de perversidade.
Contra este efeito dominante um grupo de mulheres construiu uma outra identidade. Falo das mulheres grisalhas, nem jovens nem velhas, que podemos encontrar em quase todas as cidades do ocidente. Em Graz ou Leipzig, Verona ou Lyon, em Basileia ou Antuérpia, em Turku ou Lisboa podemos cruzar nas ruas, encontrar nos concertos ou nas livrarias, no metro ou nas reuniões de condóminos, mulheres lésbicas grisalhas que aceitaram serenamente os cabelos brancos e as rugas, a meia-idade, a respiração normal do seu corpo em mudança. Elas não procuram competir nos Jogos Olímpicos de Verão nem de Inverno, nem beber a água da fonte da juventude em garrafas de água Sigg, nem permanecer eternamente juvenis em patéticos corpos protésicos. Nem, de outro modo, cumprir o programa do governo encontrando os caminhos de um envelhecimento “com sucesso”, conformista, arrastado pelos corredores do voluntariado. As mulheres lésbicas grisalhas, nem velhas nem jovens, produziram uma teoria original da idade, e com ela, uma identidade própria, um mundo que Margaret Cruikshank designou por intermédio, “in between”, sem estigmas nem estereótipos negativos ligados ao envelhecimento.
De acordo com Judith C. Barker, uma explicação para isto ter ocorrido reside no facto de, diferentemente do que sucede nos encontros sexuais entre homens e mulheres, em que os jogos de sedução utilizam uma linguagem corporal muito expressiva, hiperbolizada em alguma cultura gay, as mulheres lésbicas atribuírem particular relevo a aspectos intelectuais no processo de sedução. O código vestimentário clássico das lésbicas também ajudou. As camisas de flanela, os polares, as botas ou sandálias, não têm idade nem denunciam geracionalmente. Pode-se pensar que esta lista é também estereotipada. Que ignora as Femmes, ou as lipstick lesbians. Reconheço a crítica. Posso mesmo rever-me nela. Mas é precisamente a quase neutralidade dos códigos que lhe conferem vantagem. Não são particularmente excitantes. Mas duram e fazem durar. São como a comida vegetariana e os Volvo, os jeans, e os Mini Cooper. São outra coisa. Mesmo que não se saiba bem o quê. Ou são uma ponte para uma possibilidade in between, regressando a Cruikshank. E essa coisa, ou pelo menos essa ponte, oh, são precisas.
Gilbert Herdt, Brian De Vries, Gay and Lesbian Aging: Research and Future Directions
Springer Publishing Company
6 Comentários:
acho que é das primeiras vezes que detesto um texto teu, Luís. Associar a calma da líbido, por conveniência, ao lesbianismo. Ou esta merda é absolutamente merda, ou o Luís que leio desde 2005 (?) é um idiota armado em velho jovem (no que eu não acredito, felizmente ateia).
Afinal a coisa tem um nome científico!
apeteceu-me contrariar esta tese a meio do texto, porque nem só as lésbicas aceitam o grisalho.
mas sim, elas não entram nas modas das outras mulheres. e a sedução da meia idade é diferente, finge ser mais inteligente.
Alexandra, obrigado por me leres desde 2005 (?). Demoraste sete anos a perceber. Então peço-te que releias. Só esta, não te assustes. Depois posso continuar a resposta.
Luís Eme, sim, não só elas. Mas foram elas quem escreveu e publicou sobre isso. Textos brilhantes como o que referi no fim da crónica.
Blondewithapad, a coisa neoténica? A coisa in between? Tudo merece um nome.
Enviar um comentário
Subscrever Enviar feedback [Atom]
<< Página inicial