Parcimónia em Celas
Talvez haja quem se lembre: Wanda Gershwitz, aliás Jamie Lee Curtis em Um peixe chamado Wanda. Quando John Cleese, um dos Monty Python, começa a falar russo, a mulher desmorona-se como um boneco articulado. Cada frase dele, em russo, é uma poção erótica na dose adequada. Ela tenta recompor-se, mas se ele fala, em russo, ela rapidamente se quebra, requebra, descompõe. A comicidade da situação reside no poder súbito, mas absoluto que o homem adquiriu através da linguagem (russo), um recurso que o torna dominador.
Bonnie Gabriel manteve durante anos um blog intitulado Words for Lovers, recomendando verbos afrodisíacos para uso diário, paralelamente à dinamização de workshops de erotismo na linguagem comum, participação em programas de pós-graduação na Universidade de Nova Iorque e na San Francisco State University. A partir deste trabalho escreveu para a Random House o aclamado livro The Fine Art of Erotic Talk : how to Entice, Excite and Enchant your Lover with Words.
Borges adquiriu “o hábito de urdir hendecassílabos” porque percebeu que isso fazia tremer as pernas de Viviana Aguilar, a rapariga da Livraria La Ciudad, que fica na Galeria del Este da rua Maipú, em Buenos Aires.
Um destes dias encontrei em Celas a minha amiga Madalena. Madalena não é grande apreciadora do género humano e é particularmente crítica dos homens, que acha pouco sensíveis, auto centrados, complicativos e excessivamente preocupados com o sexo. Tomámos um café e, contra o que é hábito e ao que me lembre aconteceu pela primeira vez, acompanhou-me até à mota que por necessidade, eu deixara estacionada junto a um muro, num passeio público. Quando estávamos perto, destacou-se de um pequeno grupo de homens que conversava, um que , enquanto apanhava os cadernos que poisara sobre o assento da mota, disse: - Peço desculpa por ter utilizado, embora com parcimónia, o seu veículo.
O rapaz era magro e tinha boa figura. O movimento que fez foi discreto e cheio de elegância. O timbre de voz era caloroso. Eu ouvi a sua frase como se fosse dirigida a Madalena. Mais importante ainda: ouvi a frase, e sobretudo a palavra “parcimónia”, como Madalena a estava decerto a ouvir, uma certeira proferição física vinda “por onde o vulnerável cão do espírito ladra e lavra” até uma rapariga que quase desistiu de a ouvir.
Pus o capacete e executei o humilhante conjunto de manobras que, para abreviar, descreverei como “baixar o descanso central e iniciar a marcha”. A minha amiga tinha o sorriso feliz que a anima nos raros momentos em que parece acreditar na máxima de Pangloss. Aproximei-me dela e levantei a viseira, enquanto, com a moto de novo parada, soltava uma breve aceleração involuntária, que soou como um grunhido exibicionista. - Sai do meio da rua, Madalena. Queres ser atropelada? E ela, sem se mexer, ainda confusa: - Quem é o rapaz que adjectivou os apontamentos de "parcimoniosos"? Como é que se pode alegrar o coração de uma rapariga com uma palavra inesperada?
Bendita palavra, de facto. Virei-me para o pequeno grupo e baixei a cabeça, dentro do capacete, o que retirou algum impacto ao meu gesto, que se queria de apreço e cumplicidade. Parcimónia. O princípio que pode ser enunciado como a navalha de Occam e que, por isso, não carece de outras explicações mais complexas. Uma palavra para ser cantada, repetida num refrão de uma canção de Vincent Delerme. Arranquei e o meu coração ia leve como as faces ao vento e assim permaneceu até quase ao fim do dia.
As palavras. Quantos amigos perdi pelas palavras, quantos feri sem disso me aperceber. Quantos me desiludiram, por terem pronunciado a palavra errada, que surgia como “a pequena mancha” que subitamente se descobre na face do ser amado.
Ainda hoje, apesar de alguma condescendência adquirida, não resisto a algumas palavras, quase todas relacionadas, reparo agora, com satisfação, resgatando Bonnie Gabriel. A palavra “fruir”, que ainda me causa um arrepio apenas ultrapassado por “desfrutar”( dois arrepios). A incrível e pavorosa palavra “ prazerosa”. Fruir, desfrutar e prazerosa são palavras atrevidotas, impúdicas, que lembram as pessoas que comem fruta sem maneiras. Sempre percebi instintivamente o que era o pecado original e me envergonhei, solidário, com a mulher que abocanhava a maçã estendida pela serpente. Esta associação surgiu-me, desde que a ouvi pela primeira vez, como uma evidência anterior a qualquer experiência, uma sabedoria inata que dispensava outra explicação e podia ser entendida com o princípio da parcimónia, uma navalha de Occam que precede a razão, que era absoluta e só podia ser verdadeira. “Desfrutar”contém a palavra fruta, (leio maçã). E depois o prefixo “des”, aqui com um sentido de reforço ou intensificação, apesar de frutar, frutificar, tornar frutífero ou ser frutuoso não necessitar de reforço adicional.
Devíamos usar apenas as palavras justas que nos afastassem do fausto, da redundância, da mundanidade e do cosmopolitismo. As palavras indispensáveis que Sophia procurava e Carlos de Oliveira, outra vez ele, dizia que vinham com “o crepúsculo, como uma poeira lenta, encaminhando a mão que escreve” ou a voz da proferição “à silaba inicial/ da única palavra/ que é/ ao mesmo tempo/ água e pedra: sombra,/ som “.
Roland Barthes, Fragmentos de um Discurso Amoroso, Ed. 70
Carlos de Oliveira, Entre Duas Memórias, D.Quixote
Jorge Luís Borges, La Cifra
6 Comentários:
"A ideia de que cada acontecimento tem um propósito, uma causa final (Aristóteles), parece fundamental no modo de funcionamento da consciência humana."
Magnífico, mas permito-me assinalar que "maçã" é extremamente redutor, a lembrar as bilhas de butano/propano (riscar o que não interessar).
Um texto espantoso, como sempre :)
~CC~
Excelente texto, Luis!
Apenas um pequeno comentário "parcemonioso": o descanso, para iniciar a marcha, sobe...
Abração
PM
Também daqui arranco agora, leve e sorridente depois de ler estas palavras.
porque é que eu não vinha aqui há tanto tempo se continuas a escrever assim, Luís? belíssimo, belíssimo
Mónica
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