Mértola, vila morena
Resumo o noticiado sobre o caso: uma professora primária acusada de ter gravado edivulgado vídeos pornográficos, utilizando material escolar e tendo por cenário a sala de aula. Um jornal deu assim a notícia:
“Os pais dos alunos da escola de Penilhos, em Mértola, onde uma professora primária terá alegadamente realizados filmes pornográficos, ficaram em choque depois de terem visualizado, na passada semana, uma das gravações que circulam em sitespornográficos onde a docente exibe o corpo em plena sala de aula. No vídeo, ao qual o jornal teve acesso, a docente, de 42 anos, usa materiais pedagógicos para acariciar as partes íntimas.”
Outro jornalista registou a reacção de uma mãe: “A informação de que a professora estaria envolvida em filmes pornográficos, gravados no interior de uma sala de aula do agrupamento de escolas de Mértola, não foi totalmente nova para os pais. A mãe de um dos alunos da docente explicou ao i que ‘ao longo dos três anos’ em que a professora leccionou na escola, por diversas vezes a criança relatou ter assistido às filmagens, que ocorriam quando os alunos estariam no intervalo das aulas. ‘Não queria acreditar que era verdade quando o meu filho dizia que espreitava pela janela e via o peito da professora’, diz agora a encarregada de educação, que prefere manter o anonimato. ‘Repreendi o meu filho muitas vezes’, acrescenta.”
O conjunto destas informações é interessante. A terminologia utilizada é, só por si, relevante e constitui material de estudo multidisciplinar. De uma primeira incursão analítica, emergem seis possíveis áreas para aprofundamento futuro, eventualmente passível de financiamento externo.
1. Uma professora primária. A referência ao grau de ensino não é despida de intenção. Consultando aleatoriamente três sites da especialidade, pode constatar-se que as professoras primárias competem com as enfermeiras, os canalizadores, os personaltrainers e as madrastas jovens na lista das personagens favoritas das gravações de parcos diálogos e duvidosa densidade dramática. A professora primária, a personagem feminina que sucede à mãe na história de vida das crianças, deve constituir uma poderosa imagem erótica para os adultos infantilizados que este tipo de pornografia convoca.
2. A sequência dos acontecimentos: os vídeos circulam, os pais visionam, a professora é reconhecida, entram em choque, queixam-se ao Ministério, os jornais noticiam.Quase se pode ver o ambiente de planície desertificada em que isto sucede, como numlivro de Dino Buzzati: o calor, o vento suão, o rumor dos cafés, a primeira mulher-mãe escandalizada, que se sente investida pela responsabilidade social de denunciar.
3. A reacção da mãe: ao longo de três anos repreendeu o filho que espreitava. Não queria acreditar. De facto, é difícil acreditar. O rapazinho de 6 anos até dezembro, aluno do 1º ano, espreita a professora que acaba de chegar a Mértola. Vê-lhe o peito. Conta à mãe. É repreendido. Novo ano escolar e ele, já no 2º ano, reincide. Terceiro ano. Sucesso escolar. Mas o rapaz, agora com 8 anos, não aprende que espreitar é feio. Volta a espreitar. E como não cegou, fulminado pelo peito revelado da professora,volta a contar. E como a mãe não queria acreditar, nem viu para crer (ainda, passados 3 anos), volta a repreender.
4. A idade da professora. Não é uma jovem. É uma mulher de 42 anos, a mesma geração das mães de Mértola. Temos espectáculo para todas as idades. Dos edipianos mal resolvidos aos velhinhos libidinosos.
5. O cenário: em plena sala de aula. Plena. Não um recanto da sala. Uma carteira.Junto à porta. Frente ao quadro. Não. Em plena sala de aula da Escola Primária do Centenário. Desde Salazar, o espaço sagrado da aprendizagem. Depois dos espaços de oração e do segundo lanço das escadas do Parlamento, não se conhece um espaço público tão sagrado. O cruxifixo, Cavaco Silva e o olhar do aluno que raspou o vidro da janela e há três anos espreita, repreendido pela mãe incrédula. Em Tristana, do último Buñuel, outro jovem, este mudo, nunca mais esquecerá.
6. Uso de materiais pedagógicos. Sugestão simultaneamente previsível, imaginativa e sempre sacrílega: foi profanado o pressuposto da pedagogia única.
O caso da professora de Mértola é exemplar e talvez nenhum outro, nos últimos anos, tenha sido tão sugestivo e desafiante. De facto, a mulher de Mértola gravou, num tempo não lectivo, com intimidade, um produto artístico que depois divulgou. O facto de o ter feito no espaço singular da sala de aula decorre do conteúdo propalado. A sexualidade é um mistério, como disse Elisabeth Badinter. E o objecto fílmico que esta mulher produziu só fazia provavelmente sentido no contexto em que foi realizado, naquele espaço e com a duração do recreio, a iminência da descoberta e do escândalo.
A última notícia a que tive acesso: “A professora do ensino básico do agrupamento de escolas de Mértola que fez filmes pornográficos na sala de aula tomou uma dose de comprimidos no dia 16 de Novembro, um sábado, alegadamente para tentar o suicídio. Deixou cartas de despedida aos familiares e conduziu alguns quilómetros até uma barragem próxima de casa.”
É um dos finais possíveis. Para quem não acredita que em Mértola haja apenas a memória dos mouros, a comissão de mães e uma estrada que leva até à barragem, resta fazer chegar estas palavras à professora: se alguma vez, numa escola como esta, o miúdo que fui a tivesse espreitado, não teria contado em casa, nem porventura os meus pais a teriam denunciado, nem o material teria deixado de ser pedagógico.
Tristana, de Luís Buñuel, 1970
publicada por Luís às 10:16 da manhã
5 Comentários:
"Depois dos espaços de oração e do segundo lanço das escadas do Parlamento, não se conhece um espaço público tão sagrado." :)
"...se alguma vez, numa escola como esta, o miúdo que fui a tivesse espreitado, não teria contado em casa,..."
Como eu o compreendo.
No meu tempo nenhuma professora se atreveria em frente à foto de Salazar. Ia até ao rio espreitar as lavadeiras que se banhavam em pêlo (era em África). Nunca contei em casa, e mesmo hoje hesito! Acabava-se o gozo e com as faces a arder.
Morenaça e pintelhuda
sala de aula, um espaço mítico
Não me digam que Aníbal achou graça, a Mértola (morenaça e pintelhuda)
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