09 abril 2007

A tia gena foi embora e não volta



Tenho no corredor, perto do meu quarto, uma foto do final da segunda guerra mundial, que aparentemente nos passou ao lado, uma foto de estúdio tirada numa pequena vila do coração do país. Foi tirada num momento de perfeição e ficou suspensa no tempo. São três irmãs de ombros sobrepostos como um leque de cartas. Olham para a câmara e não parecem excessivamente felizes mas também não desconfiam que o mundo lhes possa ser adverso. Nos sorrisos diferentes e comedidos parecem ser o que são: filhas do salazarismo, de tempos obscuros, cheios de necessidades imediatas impossíveis de satisfazer, sem os horizontes vastos e promissores que são devidos à idade que têm. De olhares diferentes cada uma delas, a do meio mais confiante porque sabe que terá à sua frente uma profissão dura mas com destino traçado, a da esquerda com olhar meigo levemente assustado, perfeita no rosto equilibrado mas ainda assim apreensiva porque desconfia que não será feliz, tem sobrancelhas clássicas e nunca deixará a doçura que já lhe trespassa o rosto como uma auréola eterna, a da direita encolhe-se, sentindo-se apoucada ao lado das irmãs que julga serem mais bonitas. É a única que não usa colar de pérolas de imitação e não cuidou como as outras do penteado, disfarçando um certo desleixo caseiro com uma fita um pouco infantil no cabelo menos ostensivo e saudável do que o das irmãs. Esta última é a mais velha e, como todas as irmãs mais velhas, mais exposta à inexperiência dos pais. Sempre se quiseram umas às outras, sempre esperaram, mais cedo ou mais tarde, vir a viver perto umas das outras, mas a vida obrigou-as a passarem longos tempos afastadas e preocupadas com o que estaria a acontecer às demais. A da direita é a tia gena e acabou de morrer. Morreu com ela uma parte de nós que ficámos a contemplar de longe a sua lenta decadência. Ninguém a pode fazer voltar, ninguém pode repor a confiança que já na altura não tinha. Algum tempo antes desta foto, tinham recebido em casa duas judias polacas, refugiadas do nazismo, esperando um visto para a américa onde todas as possibilidades as esperavam. Não havia língua intermediária entre elas e as recém-chegadas, mas naquela vila húmida de quase só uma rua, saíram, trocaram sapatos, e emprestaram os cobertores de papa que na altura pesavam sobre os ombros de todos, no frio de um inverno de senhas de racionamento (ninguém se lembra deste episódio, mas eu sei, que a minha mãe, a da esquerda, mo contou). Ouviam a bbc de londres, como diziam, em frente ao café edgard até adormecerem em pé. As notícias chegavam por um rádio com o som no máximo virado para a rua. Muito depois disto, a tia gena partiu para moçambique e enviava notícias demasiado lacónicas para as outras que desconheciam totalmente o que fosse viver em áfrica. A tia gena teve que voltar com o marido e a filha, de oito anos, depois do 25 de abril. Voltou pobre e desiludida, mas nunca a ouvimos dizer que no tempo do salazar é que era bom. Por muito que lhe dissessem o contrário, à volta, ela sabia que não era, porque tinha vivido esse tempo, o tempo da fotografia de que falo. Recomeçou, mas fechou-se cada vez mais a um mundo vertiginoso que se recusava a compreender. Reuniu-se às irmãs, viu morrer o pai a quem todas eram tão ligadas. A mãe rosa, de quem herdei o nome e a memória única que mais nenhum dos netos pôde ter, tinha morrido muito antes, de uma daquelas doenças fulminantes cujo nome não se ousava pronunciar, com o sangue contaminado por leucócitos exterminadores. O pai desapareceu depois de uma velhice conturbada e, no final, penosa de assistir para cada uma delas. Todas tiveram filhos, alguns, como eu, complicados e insatisfeitos. A primeira irmã fugiu enquanto dormia depois de nos ter assegurado na noite anterior que tudo estava bem. Era a minha mãe e deixou-nos, tão desfeitos há quinze anos como agora.




Daqui a algumas horas vamos todos ver pela última vez o que restou da tia eugénia.

(rosaarosa)

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