10 setembro 2007

O Músico era meu amigo


Sarah Pickering


Recebi a mensagem de manhã. E fui até à terra dele, perdendo-me nas scuts, nas variantes, nas rotundas, no nó de P. Apesar das novas estradas, a aproximação à terra faz-se da mesma maneira. Já não se passa por Ervas Tenras nem Souro Pires, mas, ao virar de uma curva, o planalto estende-se por umas léguas até à Serra da Marofa, e no enfiamento do olhar, vê-se a cidade de P., a terra do Músico, como há muitos anos quando a vi pela primeira vez. Nessa altura a viagem durava quatro horas. Íamos para o nosso primeiro emprego a sério. Tinha lido o Goytisolo, e quando vi a mancha de P. à volta da Torre de menagem, veio-me à cabeça a fala do mouro a deixar a costa mediterrânea da Ibéria, ou de Goytisolo exilado da Espanha franquista: - Terra maldita, jamais regressarei a ti. A minha fantasia, que durou todo o tempo em que o Fiat, ou era o Datsun?, se aproximava de P., era que rumava a um sítio de onde se não voltava. - Terra maldita, jamais regressarei de ti- foi o que pensei, ou ouvi dentro de mim. Como sempre que lá voltei, quase só para encontrar o Músico.

Acabavam bem os dias em casa do Músico, sob a protecção do falcão cego. O Músico salvava-me da coligação doméstica das belas mulheres, da miséria do Ministério e da sopa com esturro da dona Celeste. Ensinava-me as estradas da raia, as manhas da Excomungada, os lugares de esconderijo, e, amigo dos animais, as habilidades dos burros, nas leiras, junto ao Côa.

Agora, o que conheço melhor na cidade de P. são as Igrejas. A da Misericórdia, onde decorrem os velórios, e ao lado a Igreja de S.Luís, para as missas de corpo presente. Foi para ali que levaram o Músico. Cobriram-no com a bandeira vermelha do partido comunista e puseram-no no cruzeiro. A missa decorreu como de costume: as epístolas de Paulo lidas pela voz titubeante das beatas, o peditório, o beijo da paz. O cortejo fúnebre a caminho do cemitério com as mulheres mais velhas a Rogar por nós os pecadores e os homens a revezarem-se ao peso do caixão. A bandeira vermelha era de fibra rasca, made na China comunista, e escorregava na urna. Havia sempre quem a compusesse, com um desvelo que se percebia ser dirigido mais ao Músico que ao trapo. À entrada do cemitério, um burro zurrou como há muito não se ouvia, de focinho esticado para o sol poente e as narinas incrivelmente dilatadas. E aliviado o féretro numa lápide, o padre rezou as exéquias, aspergindo com energia insuspeita a água do hissope sobre a foice e o martelo. O Músico hesitou, ele que não era dado a esses luxos, entre a vida eterna e o fim de tudo. E silenciosamente, como passara os últimos dias da vida, disse adeus à Luizinha e abandonou-nos. Sem o Músico, a cidade de P. não tem piadinha nenhuma. Nem da serra da Marofa à Guarda se vê quem esteja à sua altura.

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