27 março 2008

Pentecostes


Pipiloti Rist


Estou a beber um vinho muito bom e a pensar que quem mo deu não volta a dar nada parecido assim. Nunca poderei descrever o vinho que bebo, porque detesto falar de qualidades organoléticas, estágio em casco de madeira, aromas de frutos vermelhos, tintos afirmativos e encorpados , espessos e gordos, ou dos taninos afinados que escondem o toque floral da bergamota. O léxico interior da vitivinicultura é tão irritante como o do futebol ou da medicina. Concordo que este tema não tem interesse, literário ou outro. Mas pareceu-me que tinha. Hoje de manhã reparei que não havia andorinhas no céu. Apesar de ser primavera, quase Abril, Pentecostes . Agora que saboreio este vinho, vejo as luzes da periferia da cidade, a zona a que chamavam o Alto dos Barreiros, a Cumeada, os vagaluzes da serra da Lousã., penso de novo que isto talvez faça sentido. Penso em ti Amélita, quando perguntavas porquê, porquê, no dia em que o teu homem caiu fulminado, tão violentamente que a autópsia relatou uma fractura na escama do temporal e no rochedo, ossos duros e difíceis de partir. Perguntavas porquê e não era o relatório da autópsia que querias, artérias entupidas em territórios desconhecidos. Querias outra coisa. Tinhas aquilo a que John Gray chamou a doença humana, a necessidade de atribuir significados.
Ontem de manhã, no quiosque dos jornais, à hora do almoço, uma mulher aproximou-se e fez-me uma pergunta verdadeiramente surpreendente. O meu filho- disse ela- se lhe mostramos filmes ou fotos em que ele aparece em pequeno, desata a chorar. A mulher era magra, com o cabelo curto e pintado de ruivo, embora acredite que a pergunta possa ser formulada por morenas de seio farto. O miúdo, agora com 9 anos, chora em silêncio, afectando um desgosto profundo, de cada vez em que se reconhece infante. Ela quer saber se é grave, se se deve preocupar e porque é que existe tal comportamento. Perguntas de mais para aquela hora da manhã.
Há um momento de grande reconciliação com a falta de sentido de tudo. Um momento em que nos vemos de fora e as luzes das eólicas, as janelas iluminadas na Cumeada, nas casas das famílias do Alto dos Barreiros, a ausência das andorinhas, o monge budista de Lhasa que escreveu no papel deixado à Clara uma frase que ela não sabia ler, e depois fugiu, tudo isso, se inscreve num mundo que é perfeito, por nada fazer sentido e tudo se equivaler na sua sem-razão.
Eu sei que esta sensação, estas imagens, este bem-estar é mais devido à estimulação cerebral pela anóxia de uma zona que não vou nomear para não afectar conhecimentos que não domino, uma metalinguagem tão irritante como a do vinho.E este saber, irritante para ti, Amélita, não diminui a intensidade da sensação, nem a sua deliciosa inutilidade.

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