Epifania ao empacotar os livros
Manuel Alvarez Bravo
Passei a tarde a arrumar os teus livros, em caixas de cartão da Aki. O objectivo é mudá-los para estantes novas, numa casa diferente. Essa casa foi, de certo modo, preparada para acolher os teus livros, estes livros, e os meus livros. Durou tanto tempo o projecto da biblioteca, que os livros envelheceram. Entretanto envelheceu a própria ideia de livro. Detesto chorar sobre leite derramado, mas o ípsilon deste fim-de-semana dedicava três de cinquenta e seis páginas a livros e à critica literária. Cinco por cento. Durante este tempo, a FNAC reduziu o seu espaço livreiro e tornou-se uma empresa implacável de venda de equipamentos informáticos. Trabalho com pessoas que não lêem, quando dou livros percebo que sou visto como alguém sem imaginação.
Eu tinha posto a salvo alguns livros que não nomearei. Mas, exceptuando esta pequena contradição, senti-me subitamente pronto para me despedir destes livros, dos meus livros e de quase todos os livros. Em troca de uma parede branca, de um teclado, um ecrã, um acesso à rede. Até agora precisava dos livros, comprava , folheava, lia, guardava, emprestava, sublinhava. Esta tarde compreendi que também aqui, neste afecto que julgava constitucional, ocorrera em mim uma transformação. Já não preciso dos livros. Que se lixem os livros. E as estantes e os marceneiros. Que ardam, bem ou mal.
21 Comentários:
Alguém que lhos guarde até que lhos peça de volta. Não os queime, a inquisição já lá vai. As melhoras literárias.
três de cinquenta e seis, pois é. E ainda me lembro de muitas pessoas terem saudado a 'fusão' do mil folhas no novo ipsilon...
http://www.mediapart.fr/club/blog/la-redaction-de-mediapart/181109/signez-l-appel-international-pour-antonio-tabucchi
FS
na minha estante os livros já estão em 2 filas, os detrás, infelizes, a raramente verem o sol. Mas há sempre lugar para mais por isso, antes de os queimares, manda a lista
A decepcionante constatação, de que os livros ardem tão bem, na voracidade tecnológica.
hoje os homens lá andam a arranjar o telhado, a próxima semana vai ser linda: acordar sem relógio e, colocadas as estantes no lugar, pegar em cada livro lembrando a sua história, entregar-lhes a casa nova
o mais especial vai ser a cerimónia face aos livros afectados pela inundação
Sim, está bem. E levar o computador para a cama? E dobrar os cantos das folhas, meter papéis pelo meio ("olha esta carta, estavas aqui?")? E sentir o prazer do papel nos dedos?
Eu cá guardava os livros e deitava fora o ípsilon. E a FNAC, já agora: em algum momento foi uma livraria?
Outro dia descobri que o dono da livraria-francesa-na-cave-das-galerias-Lafayette-em-Berlim lê e tem opinião sobre os livros que vende e os respectivos escritores. Quero lá saber dos ípsilons e das FNACS, quero é uma tertúlia ocasional (será que esta palavra continua a existir na era internet?) com esse livreiro.
Lívia, obrigado. Isto passa.
Harry, isso foi mil folhas atrás...
Isabel, os livros de trás são muito infelizes.
Fernando f., é isso mesmo.Obrigado pelos seus comentários.
Margarete, boa sorte.
Helena, absoluto acordo. Uma tertúlia ocasional soa a sexo recreativo. Deve ser bom. O problema é que não está ao alcance de tod@s.
E FS , obrigado por ter enviado o apelo sobre Tabucchi. Já assinei.
Há sempre um juiz pronto a servir os Berlusconis deste mundo.
Essas suas associações de ideias, Luís...
Um dia que passe pela tal cave das tais galerias, aproveite para uma tertuliazinha com o tal livreiro. Algo me diz que lhe vai saber muito bem, e que nunca mais entra numa FNAC - a não ser para comprar um electrodoméstico.
Agora, a pergunta que não quer calar: "sexo recreativo" é uma tautologia, ou um pleonasmo?
E a pergunta, agora realmente séria, que não quer calar: em Portugal não há livreiros a sério, pessoas que gostam daquilo que vendem? Que têm critérios para a escolha dos livros, que gostam de conversar com os clientes?
(É verdade que não conheço nenhum, mas também já não moro em Portugal há 20 anos)
Por cá também temos os "nossos" Berlusconis. E juízes para os servir, claro.
Nem de propósito...
http://combustoes.blogspot.com/2009/11/fragilidade-dos-livros.html
teresab
a propósito de livros. Andei três dias com a frase cantante na minha linda cabecinha: Eu tive o vício dos livros, agora deixei-o. No sábado, ocasionalmente, (não é bem assim mas faz de conta) estive numa livraria. Comprei quatro.
Começo a achar que não possuo os livros, são eles que me possuem a mim.
Todos nós temos um dia mau, como compreendo isso....
...Já passou?
Aí vai o endereço de um livreiro a sério: http://chapeuebengala.blogspot.com/
Não se entra na livraria dele sem se aprender alguma coisa, tem um saber imenso, imenso!
~CC~
Engraçado...passei aqui por acaso, mas confesso que fiquei surpreendida com este desabafo, pois só o entendo como tal.
"que se lixem os livros...que ardam bem ou mal" não poderia discordar mais!
Encontro-me actualmente do extremo oposto...considero que ultimamente pouco tenho lido e sinto a falta, por isso aceito uma sugestão!
...ah, eu passo livros a arrumar as tardes, que se lixem os CComerciais. E tenho saudades do Mil Folhas, que agora é tudo ao molho e as sugestões vêm pelo correio.
Cara Carina
Se por acaso voltar a passar e quiser mesmo um conselho literário, atrevia-me a sugerir-lhe não um livro- um livro é uma árvore derrubada sem motivo- mas um texto virtual sobre comida: Tony Judt.
http://blogs.nybooks.com/post/257098377/food
CCF, obrigado pela indicação de um livreiro a sério.
Já tive o prazer de queimar um livro. Deu-me um gozo infinito. Atirei-o para a lareira da cozinha da quinta. Foi uma prenda de natal da tia Rosa. Na contra-capa vinha escrito que era a história de uma rapariga gorda que fica anorética e acaba por se suicidar. Eu era uma adolescente borbulhenta e com excesso de peso, mas ainda assim suficientemente saudável para perceber que a maldade é sempre uma boa fonte de ignição.
Mais um «volume» para os Favoritos
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