09 maio 2010

Nice: quatro posts


Jeff Wall

Uma reunião de trabalho fez com que tivesse de voltar a Nice, a quinta cidade de França. É estranho que Nice, impronunciável desde que o inglês se afirmou como a língua franca e a única língua estrangeira para milhões de falantes, seja a quinta cidade francesa. Quando recebemos uma informação destas desconfiamos das Oficinas de Turismo e pensamos que se entrássemos em Bordéus, Toulouse ou Montpellier, Strasbourg ou Nantes, receberíamos uma informação semelhante. A Antónia foi googlar. É verdade. Marselha já é a segunda cidade de França e Nice a quinta. O Mediterrâneo não está decadente como imaginamos. Não é um grande lago morto. Nas praias crescem as cidades que guardam os emblemas da glória.

Levava comigo o livro de Vila-Matas, Dietario Voluble. Cheguei a Vila-Matas pelo Mal de Montano e depois, verticalmente, para Bartleby e a Literatura Portátil. Curei-me com Doctor Pasaviento, e agora, tantos anos depois, o escritor catalão é como uma dor de estômago depois de omeprazol. Posso lê-lo sem inquietação.

Cheguei a Nice na tempestade. O avião foi abanado violentamente ao passar pela cortina de nuvens e quando pude ver a costa havia uma onda gigantesca que varria a Promenade des Anglais e recuava para o mar, tingida de ocre. Pareceu-me ter aterrado no mar, com velocidade excessiva. A pista tinha uma ondulação estranha que não interferia com a travagem do aparelho, como sucede quando a superfície das águas se agita e as criaturas do mar procuram o céu.
Vi tudo isto com os olhos desinteressados do turista acidental. O meu preconceito niçois estava cristalizado. A mansarda que o recepcionista me atribuíu era fria e o barulho da chuva no telhado não me deixou dormir.
Nos dias seguintes tive de trabalhar em salas que são iguais em todo o mundo. Só muda a dimensão e a qualidade dos audio-visuais e das retretes. O Geberit triunfou em toda a Europa e vulgarizou-se o modelo ecológico, com a descarga mínima adequada às pequenas bexigas.
No último dia apareceu algum sol e fiz a pé o Boulevard Dubouchage até à Rua Jean Médecin, a Praça Massena até à Promenade des Anglais e li o Dietario no Café du Palais, durante as duas horas que faltavam para a viagem do regresso.
Vila-Matas esteve doente durante o tempo que este diário cobre. Mas ao contrário dos grandes escritores ingleses contemporâneos entrados na velhice, nota-se nele um certo apaziguamento. Que por um lado é literário: a vontade de Duchamp de viver a vida como uma obra de arte. Por outro lado é o desejo sincero de ter em conta o conselho de Bernardo Atxaga :”creio que chegou a hora de viver mais atentamente”.

Estou então na Place du Palais, vivendo atentamente. Vejo a gente passar, sentar-se junto à fonte, nas mesas ao meu lado. São três horas de um dia de Maio. O sol reapareceu após três dias de chuva e tempestade. Um sol frio entre borrascas. As praças têm uma designação bilingue. Em francês e num dialecto que sei ser o niçois, atestando um passado que desconheço inteiramente. Na mesa ao meu lado dois jovens magrebinos, de casaco de couro e olhar furtivo, fumam nervosamente. Noutra mesa, um grupo de rapazes do liceu bebe cerveja e segura nos capacetes com desconforto. Passam mulheres. As saias deste verão serão curtíssimas. Vagabundos sentam-se junto à fonte, e ficam, de mãos ligadas, ao lado de mulheres de gabardina clara e olhar sombrio. Um grupo de crianças chega, em alvoroço. A professora segue-os. Tem os cabelos e a roupa desalinhada e fala alto ao telemóvel, em italiano. Ou será aquilo o dialecto niçois? Parece aguardar ordens. As crianças misturam-se com os vagabundos e as mulheres perdidas. Um casal de turistas lambe um gelado. Uma rapariga fotografa um vagabundo com nariz de palhaço. Este vagabundo é especial. Tem ao seu lado uma pequena corte composta pelo aprendiz silencioso, aquilo que nos créditos de um filme seria descrito como segundo vagabundo, e ainda uma caixa para animais de onde sai um roedor de orelhas escuras e passo inquisitivo. Uma mulher de quem nunca verei a cara pára. Tem uma longa cabeleira, meias de renda e uma saia com folhos, como Sua Santidade em dias festivos. Debruça-se sobre o primeiro vagabundo e beija-o afectuosamente. Depois solta exclamações de espanto e ternura que me parecem dirigidas ao roedor. De súbito o primeiro vagabundo solta um grito horrível. De dor, surpresa e ameaça. A mulher de rendas levanta-se apressadamente, muito digna e retoma a marcha. Vejo que leva consigo uma caixa rolante de transporte de animais. Durante este tempo, o cão narcotizado que os vagabundos costumam expor como quadros vivos de Lucien Freud, continua prostrado no seu sono mortal. O primeiro vagabundo, de novo visível pela saída de campo da mulher de rendas, foi mordido pelo roedor. Mostra o dedo ferido ao segundo vagabundo, um temível dedo de pau, um dedo de cadáver fixado em formol, o dedo que Adrian Walker desenhou e Jeff Wall fotografou. Depois retira da mochila um spray desinfectante do Laboratório Roche Posay e borrifa-se metodicamente, só interrompendo estes gestos para dar safanadas nas orelhas do roedor sempre que este se aproxima.


Jeff Wall


Passa mais gente. Olho-os com estranheza. Percebo a língua em que falam. Mas não sei quem são, de que vivem, o que os preocupa, se têm pais, filhos, namorados, esperança. Não sei quem são. Não sei o CV que apresentam quando pedem emprego. Estão de folga ou de férias? São intermitentes? Apoiantes do Front National? Porque se tatuam? Que comem? São os pais dos miúdos que nos fins de tarde fazem skate sem capacete na Praça Garibaldi ou nos passeios do Parque de camionagem? Vivo num mundo que não compreendo. Leio os jornais e as revistas, vejo TV, mas os canais errados, leio os outdoors e não compreendo. Aqui ou no meu país. Não compreendo. Devo inquietar-me? Será que deixei de perceber um mundo que andou depressa demais. Ou terei perdido a ilusão de perceber.
Chega a hora de partir. Durou afinal pouco esta suspensão do tempo na Place du Palais. Estive sozinho. Se estivesse alguém comigo falaríamos baixo, como se ao vivê-la o estivéssemos a fazer exclusivamente para el recuerdo.

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3 Comentários:

Blogger harness disse...

adorei ler isto. obrigado.

domingo, maio 09, 2010  
Blogger at disse...

ainda bem que escreves. obrigada.

terça-feira, maio 11, 2010  
Blogger Silvia Chueire disse...

Tanto tempo sem aparecer por aqui e leio este texto. Revigorante, Luís.
É bom lê-lo e me aperceber da sua sensibilidade e sentir a angústia.

Um abraço,

Silvia Chueire

terça-feira, maio 11, 2010  

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