24 agosto 2011

Bicicleta

(publicado no jornal i, a 10.08.2011. Hoje, na mesma coluna do i, Babi Yar.)


O episódio é contado por Julian Barnes num dos seus livros recentes, "Nada a Temer", na tradução portuguesa. Bertrand Russell descreve assim o fim do seu primeiro casamento: "Uma tarde fui andar de bicicleta, e de repente, quando passava por uma estrada no meio do campo, percebi que já não amava Alys. Até esse momento, não fazia sequer ideia de que o meu amor por ela estivesse a diminuir." Barnes conclui exclamando: "Afastem os filósofos das bicicletas."


Bertrand Russell não foi apenas um grande filósofo, sobretudo na área da lógica. Foi igualmente um matemático, um activista social e um publicista que tornou acessíveis a públicos alargados descobertas relevantes do seu tempo. Russell nasceu em 1872, na aristocracia inglesa, e por morte dos pais foi entregue à avó, com o objectivo falhado de evitar que se cumprisse a última vontade do progenitor: a de o pequeno Bertrand ser educado no agnosticismo.

O passeio de bicicleta em que Russell teve a epifania do desamor a Alys aconteceu em 1901. Nesse ano, Bertrand Russell ensinava no Trinity College e levava sete anos de casamento com Alys P. Smith. A bicicleta era o meio habitual de transporte, nesse início do século XX.

Na biografia romanceada de H. G. Wells, David Lodge conta que foi igualmente num passeio de bicicleta nos campos do Surrey, por volta de 1900, que o romancista percebeu que acabara o seu tempo de fidelidade conjugal e se passou a ver, sem vergonha, como um corredor de mulheres, um anjo do "amor livre". O romance de ficção que celebrizou Wells foi "A Máquina do Tempo", editado em 1895, traduzido para quase todas as línguas, repetidas vezes adaptado à rádio e ao cinema. Quando em "A Man of Parts" (assim se chama a ficção de David Lodge) Wells discorre sobre a máquina do tempo, percebe que a imaginou como uma bicicleta. E aceita essa evidência sem desagrado.

"Era a idade da bicicleta", diz ele "E era poético, quase mágico."

A "Autobiografia" de Bertrand Russell tem quatro volumes e mais de mil páginas. A primeira é quase comovente, particularmente quando ele declara que perseguiu durante toda a vida uma ideia "do amor, o conhecimento e a piedade pelo sofrimento da Humanidade". Mas, naquilo que já é chamado o "plebiscito googliano", é provavelmente a passagem da bicicleta que aparecerá mais citada.

Detenhamo-nos então um momento no passeio de bicicleta. Por volta dos anos 50, a mulher que viria a ser minha mãe era professora primária numa aldeia da Beira Interior, à época rodeada de castanheiros. Ao fim-de-semana, o meu pai viajava de comboio até à estação da vila mais próxima, onde o chefe lhe guardava uma bicicleta. Seguia-se uma hora e meia de caminho de serra. Imagino que nessas viagens solitárias tomou várias decisões, viu com alguma claridade aspectos da sua vida cujas dimensões desconhecia. Aconteceu o mesmo a milhões de homens e mulheres, a caminho das fábricas, dos empregos, dos campos. Para quase todos era um dos poucos momentos que, verdadeiramente, lhes pertenciam. Um bem privado, um momento filosófico. Alguns anos depois reencontrei, num sótão, a bicicleta. Era uma pasteleira Champion, com travões de alavanca, que depois foi restaurada e pintada por um mecânico do Terreiro da Erva. Andei nela por caminhos de terra vermelha descritos por Carlos de Oliveira num dos textos que compõem o estranho livro chamado "O Aprendiz de Feiticeiro". Desde essa data que sei o que é um cérebro que se solta quando o esforço físico se intensifica e as pernas libertam o veneno láctico. Sei do que ele é capaz. De como as imagens dos que nos são próximos passam por um crivo estreito, um líquido revelador, um escrutínio que não convocámos, nem desejámos. E como, no final de um passeio, nos sentimos outros, tão distantes do ser ingénuo que iniciou a pedalada.

Bem-aventurados os que são feitos de uma só peça, uma só fé, uma certeza durável. Mas, por precaução, mantenham-nos afastados das bicicletas.


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8 Comentários:

Blogger JARRA disse...

Não largues a bicicleta Luis, que o teu pensamento perdeu a amargura que te atormenta ultimamente.
Lubrificar os fluidos biológicos e do pensamento é pois compensador.

quarta-feira, agosto 24, 2011  
Blogger Luís disse...

Jarra, não percebo. O meu pensamento perdeu a amargura e a amargura atormenta-me. Que frase estranha para quem me conhece apenas do pensamento. Da escrita, quero dizer. Mas aceito o conselho. Sobretudo se for na Ecovia do Lima.

quarta-feira, agosto 24, 2011  
Anonymous Anónimo disse...

Ainda no campo das perdas em cima de uma bicicleta: Franco Volpi (heideggariano não-convicto) morreu atropelado enquanto voltava para casa na sua bicicleta (o seu transporte de eleição). Atropelamento hit-and-run.

quarta-feira, agosto 24, 2011  
Blogger Carlos disse...

Vá lá: até que enfim surge uma razão para comprar o i.

quarta-feira, agosto 24, 2011  
Blogger fallorca disse...

Creio que a Nico, a dos Velvet Underground, também foi atropelada ou morreu na sequência de uma queda de um velocípede

quarta-feira, agosto 24, 2011  
Blogger ZMB disse...

Além disso,a grande Christa Päffgen mais conhecida por Nico, morreu ao cair de bicicleta em Ibiza, acho eu que em 1988.

quinta-feira, agosto 25, 2011  
Blogger HCM disse...

Li a bicicleta na Natureza mas aquela não é uma pasteleira. Muito bem escrito e bom como sempre. A última parte é antológica.
A mente é uma engrenagem – tem corrente, rodas pedaleira e livre, quadro, travões e guiador e tudo. Para andar, temos que nos saber equilibrar, pedalar de pé nas subidas e fazer as mudanças, para ter o prazer de descer a ladeira em roda livre, com a brisa na cara a refrescar as ideias – a desemaranhar os engramas.
Sísifo nunca descobriu; os tugas também não - dizem não ter tempo.
Ainda não digeri o Babi
Um abraço
H

sexta-feira, agosto 26, 2011  
Blogger sandra costa disse...

Gostei muito e do "Babi Yar" também.

segunda-feira, agosto 29, 2011  

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