A rentrée no tempo dos cartuchos
Publicado no jornal i. Hoje, no mesmo jornal, leia Hegemonia
Agora as meninas e os meninos voltam para a escola. Acabou o rega-bofe do verão, as noitadas, as festas, os foguetes, os bailes nos largos da capela, as procissões e o fogo-de-artifício. Os primos de Paris-Banlieue já regressaram a casa, carros bons só mesmo os dos ricos que não ligam à precaução de Marcelo (1) e se fiam no Vilaverde Cabral (2). Vêm longe os agasalhos, as professoras ainda usam sandálias, se não for contra o regulamento. Graças à boa tradição franciscana o Vaticano não repara nos pés das mulheres. Devíamos manter uma breve oração privada para que os defensores da fé não se cruzem com estes pés, tão deliciosamente torneados, sem mancha no calcanhar, como se as donas fossem hovercrafts planando nas calçadas. E as unhas perfeitas, brilhantes, carmim, com a hemoglobina saturada a 100% para todo o sempre e sem cuidados especiais. Na rentrée , uma menina de 14 anos volta a recolher às onze da noite e passa duas horas a escolher e alinhar no sofá a roupa e os adereços que usará no dia seguinte. Acorda às seis e meia para delicadas operações de embelezamento das quais a mais demorada parece ser o desfrisamento.
Ainda está calor e as conversas são sobre as férias e os grupos de férias, as canções do verão e as novidades, concursos, o Justin Bieber e aTaylor Swift , fusquice e mais fusquice misturando a vida das celebridades com os chats das amigas. Os rapazes fazem piruetas em locais de boa visibilidade e às vezes entusiasmam-se tanto que se esquecem das meninas em troca de um bom jogo ou de uma briga. Era assim no tempo dos cartuchos, como diz a Rosa(3), dos vinis, das K7s, dos CDs. Continuou assim no tempo dos walkmans, dos MP3, dos iPods ou dos vinis reborn.
As teens ditam os modos e as modas. As pré -teens imitam-nas. Verniz menos aberto, menos pedraria nas sandálias, a mesma exuberância nos colares e umas cripto -tatuagens. Os rapazinhos voltejam, ainda sem saber bem para quê.
Na rentrée, como no início das férias, um vento mau estremece os mais frágeis, os que detestam as transições e cujos ciclos são pontuados por tormentas. Dores de cabeça, muitas dores de barriga. Um rapaz de 9 anos tomou comprimidos, outra fugiu do CAT de abrigo.
Um dos prazeres da rentrée é comprar lápis, enquanto for possível um pelo menos da Faber-Castell, um estojo, afiadeira, borrachas, cadernos de papel pautado, quadriculado, lisos.
No tempo dos cartuchos, os livros escolares eram encapados com papel ferro, cinzento, castanho, azul, às vezes papel seda, mais tarde papel autocolante. A matéria era fácil ou tão dificil que parecia impossível que fosse para valer. As janelas tinham os vidros pintados, para não haver distrações com a paisagem.
A senhora Thatcher (3) dizia:
- Não há sociedade. Há o indivíduo e a família.
Esquecia-se da turma. A turma era o núcleo da sociedade dos miúdos. A primeira tarefa da rentrée , a ocupação do espaço na sala de aulas, era uma tarefa partilhada com os professores. Mas as miúdas e os miúdos da turma adiantavam-se na construção do mapa mental. Número doze, tendo à frente o sete e o dois, ao lado o onze e o treze e atrás o dezasseis, o dezassete e o dezoito. O seis é o rapaz que mora na rua de cima. O doze é perigoso. O sete engraxador. O onze tem acne pustular e quer ser amigo.
De quem ele gostava mais era da professora de português. Encontrava-a todos os dias, e por vezes mais do que uma vez por dia. Viveu esses anos em estado de encantamento, um sentimento alimentado pela literatura através de uma mulher admirável, de voz doce e nunca exaltada. Chamava-se Beatriz, conduzia um Morris 1100 azul claro era casada com o professor Metodólogo de Matemáticas. Não havia parque para os professores mas encontrava-se sempre lugar para estacionar . Via-a chegar, às duas e um quarto, para as aulas da tarde. Ela nunca faltava e nunca adoeceu, caso contrário ele ter-se-ia preocupado. Entregou-lhe poemas ou textos menos preguiçosos que escrevia e recebeu, confuso, um livro de Sebastião da Gama cujo título era Serra-Mãe. Para ele a rentrée era voltar a encontrá-la e depois perdê-la, quando dispersaram a turma, numa estratégia preventiva que caracterizava a escola desses tempos.
Agora acontece-lhe falar com um rapazinho do tempo dos ipods. E com alguns consegue falar sobre a escola. Sabe, pelos olhos deles, que há ainda em todo o lado alunos e professores assim, e que a rentrée pode ser o tempo de um reencontro amoroso, que, ao contrario do amor conturbado das mulheres e dos homens é tranquilo e ingénuo como a serra da Arrábida no tempo dos cartuchos ou os poemas de Serra-Mãe.
1) Marcelo pediu aos ricos para, nos tempos que correm, não se exibirem.
2) Vilaverde Cabral, um sociólogo de serviço, disse numa entrevista recente que esperava que o povo português ardesse em lume brando.
3) Cartuchos (cartridges ) era o nome de um gadget de grandes dimensões usado para reproduzir música nos carros. Rosa Oliveira, professora de literatura, cunhou este termo para designar esse tempo.
4) Primeira-ministra britânica da transição entre os cartuchos e as K7s.
Agora as meninas e os meninos voltam para a escola. Acabou o rega-bofe do verão, as noitadas, as festas, os foguetes, os bailes nos largos da capela, as procissões e o fogo-de-artifício. Os primos de Paris-Banlieue já regressaram a casa, carros bons só mesmo os dos ricos que não ligam à precaução de Marcelo (1) e se fiam no Vilaverde Cabral (2). Vêm longe os agasalhos, as professoras ainda usam sandálias, se não for contra o regulamento. Graças à boa tradição franciscana o Vaticano não repara nos pés das mulheres. Devíamos manter uma breve oração privada para que os defensores da fé não se cruzem com estes pés, tão deliciosamente torneados, sem mancha no calcanhar, como se as donas fossem hovercrafts planando nas calçadas. E as unhas perfeitas, brilhantes, carmim, com a hemoglobina saturada a 100% para todo o sempre e sem cuidados especiais. Na rentrée , uma menina de 14 anos volta a recolher às onze da noite e passa duas horas a escolher e alinhar no sofá a roupa e os adereços que usará no dia seguinte. Acorda às seis e meia para delicadas operações de embelezamento das quais a mais demorada parece ser o desfrisamento.
Ainda está calor e as conversas são sobre as férias e os grupos de férias, as canções do verão e as novidades, concursos, o Justin Bieber e aTaylor Swift , fusquice e mais fusquice misturando a vida das celebridades com os chats das amigas. Os rapazes fazem piruetas em locais de boa visibilidade e às vezes entusiasmam-se tanto que se esquecem das meninas em troca de um bom jogo ou de uma briga. Era assim no tempo dos cartuchos, como diz a Rosa(3), dos vinis, das K7s, dos CDs. Continuou assim no tempo dos walkmans, dos MP3, dos iPods ou dos vinis reborn.
As teens ditam os modos e as modas. As pré -teens imitam-nas. Verniz menos aberto, menos pedraria nas sandálias, a mesma exuberância nos colares e umas cripto -tatuagens. Os rapazinhos voltejam, ainda sem saber bem para quê.
Na rentrée, como no início das férias, um vento mau estremece os mais frágeis, os que detestam as transições e cujos ciclos são pontuados por tormentas. Dores de cabeça, muitas dores de barriga. Um rapaz de 9 anos tomou comprimidos, outra fugiu do CAT de abrigo.
Um dos prazeres da rentrée é comprar lápis, enquanto for possível um pelo menos da Faber-Castell, um estojo, afiadeira, borrachas, cadernos de papel pautado, quadriculado, lisos.
No tempo dos cartuchos, os livros escolares eram encapados com papel ferro, cinzento, castanho, azul, às vezes papel seda, mais tarde papel autocolante. A matéria era fácil ou tão dificil que parecia impossível que fosse para valer. As janelas tinham os vidros pintados, para não haver distrações com a paisagem.
A senhora Thatcher (3) dizia:
- Não há sociedade. Há o indivíduo e a família.
Esquecia-se da turma. A turma era o núcleo da sociedade dos miúdos. A primeira tarefa da rentrée , a ocupação do espaço na sala de aulas, era uma tarefa partilhada com os professores. Mas as miúdas e os miúdos da turma adiantavam-se na construção do mapa mental. Número doze, tendo à frente o sete e o dois, ao lado o onze e o treze e atrás o dezasseis, o dezassete e o dezoito. O seis é o rapaz que mora na rua de cima. O doze é perigoso. O sete engraxador. O onze tem acne pustular e quer ser amigo.
De quem ele gostava mais era da professora de português. Encontrava-a todos os dias, e por vezes mais do que uma vez por dia. Viveu esses anos em estado de encantamento, um sentimento alimentado pela literatura através de uma mulher admirável, de voz doce e nunca exaltada. Chamava-se Beatriz, conduzia um Morris 1100 azul claro era casada com o professor Metodólogo de Matemáticas. Não havia parque para os professores mas encontrava-se sempre lugar para estacionar . Via-a chegar, às duas e um quarto, para as aulas da tarde. Ela nunca faltava e nunca adoeceu, caso contrário ele ter-se-ia preocupado. Entregou-lhe poemas ou textos menos preguiçosos que escrevia e recebeu, confuso, um livro de Sebastião da Gama cujo título era Serra-Mãe. Para ele a rentrée era voltar a encontrá-la e depois perdê-la, quando dispersaram a turma, numa estratégia preventiva que caracterizava a escola desses tempos.
Agora acontece-lhe falar com um rapazinho do tempo dos ipods. E com alguns consegue falar sobre a escola. Sabe, pelos olhos deles, que há ainda em todo o lado alunos e professores assim, e que a rentrée pode ser o tempo de um reencontro amoroso, que, ao contrario do amor conturbado das mulheres e dos homens é tranquilo e ingénuo como a serra da Arrábida no tempo dos cartuchos ou os poemas de Serra-Mãe.
1) Marcelo pediu aos ricos para, nos tempos que correm, não se exibirem.
2) Vilaverde Cabral, um sociólogo de serviço, disse numa entrevista recente que esperava que o povo português ardesse em lume brando.
3) Cartuchos (cartridges ) era o nome de um gadget de grandes dimensões usado para reproduzir música nos carros. Rosa Oliveira, professora de literatura, cunhou este termo para designar esse tempo.
4) Primeira-ministra britânica da transição entre os cartuchos e as K7s.
Etiquetas: crónicas do i
3 Comentários:
então eu estou aí sobreposta a senhora tacher ou com ela em cima de mim, que pouca vergonha é esta?
rosa margareth
um sorriso nostálgico... e as transições continuam a doer. Pelo menos, as que valem a pena.
O medo de começar as aulas numa escola nova é o mesmo de nos metermos num novo projeto de trabalho. O prazer de comprar material escolar ainda é o mesmo de ir escolher a caneta ideal para utilizar todos os dias.
Há coisas que nunca mudam.
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