01 fevereiro 2012

O décimo primeiro


foto de Dr. Gica em pescada nº6



publicado no jornal i de 17/01/2012. As crónicas nesse jornal são agora semanais, aos sábados.


Nas férias do Natal, um grupo do décimo primeiro decidiu organizar um programa alargado de fim de ano. Eram oito, quatro rapazes e quatro raparigas. Instalaram-se num andar da Marginal, um desses investimentos que o pai de um deles fizera há anos, quando os miúdos eram mais pequenos e o Verão na praia de E. lhes parecia um programa. Depois as crianças cresceram e o vento soprou mais forte, a temperatura das águas desceu, a noite de E. ficou uma pasmaceira. A casa está quase sempre fechada exceto quando vêm os miúdos. Chegam na sexta feira, saem para a noite, dormem todo o dia, acordam famintos, vão comer qualquer coisa aos restaurantes da Marginal, depois voltam para jogar, trocar sms com outros amigos mais interessantes, actualizar o status no facebook e preparar a noite seguinte. A casa fica tão suja que é preciso mandar uma empresa de limpezas. Eles são repreendidos, as mães trocam telefonemas, entre a preocupação e o orgulho. São todos bons alunos num Colégio que disputa os primeiros lugares do ranking. Partilham a marca dos ténis, as calças justas, os andróides, o corte de cabelo, o roubo ritual dos carros dos pais, o desconhecimento aprofundado das drogas, a ideia de que o desemprego é para os outros e de que as suas famílias serão poupadas.
No dia 28 de Dezembro a noite de fim do ano parecia um objetivo longínquo. Anteciparam a festa. Compraram comida num take away, basicamente frango e batatas fritas. E álcool: as meninas fizeram sangria, beberam três jarros num instante, riram-se muito, disseram a sede que esta merda dá e foram as primeiras a vomitar. Os rapazes trouxeram quatro grades de cerveja e duas garrafas de vodka. Em menos de duas horas beberam tudo. Não sabem dizer porque é que beberam tão depressa. Porque tinham combinado uma sessão de sexo em grupo e estavam nervosos. Porque quando se está assim as coisas parecem acelerar. Porque tinham experimentado um produto novo. A coisa nova que eles tomaram, oral e nasal, chama-se agora R., no código desta tribo e um deles sabia onde se vendia. Na praia de E. e na cidade onde vivem.
O Tiago tem um azar danado. Não consegue vomitar. Vomitaram todos. Todos e todas. Nas retretes, nas banheiras, no chão da cozinha e nos lençóis da cama. Antes do sexo em grupo vomitaram em grupo. As meninas vomitaram a sangria. Os rapazes a cerveja. E as batatas fritas, em conjunto. A Sancha começou a chorar e disse sinto-me a morrer, quero telefonar aos pais, sinto-me a morrer. Alem disso achava que R. devia estar falsificado ou ter efeitos adversos. Tinha as veias todas inchadas e azuis. Uma das meninas disse à Sancha que a proibia, estás a ouvir, proíbo-te de telefonar a quem quer que seja. E que se calasse com essa dos efeitos adversos. Se se sentia a morrer era bom, tinha é que curtir essa sensação que não é todos os dias que uma pessoa pode sentir-se a morrer. E as veias, claro que são azuis, de que cor é que querias ter as veias. A menina que falou assim é a Muriel, uma líder com duas tatuagens, um piercing lingual aplicado em Dublin no verão e uma grande experiência em bloom. Foi ela quem inalou primeiro e disse a dose para os principiantes. O problema é que os principiantes não quiseram confessar que era uma estreia e arrearam pela medida alta.
Parece que afinal se divertiram muito, de manhã ainda dançaram na praia e tinham tanta sede que eram capazes de beber a água suja das garrafas abandonadas no areal.
Faltava o Tiago.
Mas faltava tanta coisa que o Tiago não fazia falta nenhuma. Faltaram os preservativos ao Suss, faltou saber quem pinou com quem, faltou perceber porque é que a Sancha tem um olho negro e sangra do lábio. O Tiago está a dormir, qual é o problema?
Dormiu todo o dia. E continuou a dormir durante a noite. Não acordou quando lhe vieram perguntar se tinha fome, é uma ressaca má, explicou a Muriel, e atirou-lhe para cima com mais um cobertor. Na verdade acordava a espaços, mandava sms aos pais, isto está bué de divertido beijinhos gosto muito de ti mãe. Mas de cada vez que abria os olhos sentia a cabeça vazia. Como se o cérebro tivesse fugido. Alguma coisa essencial tinha abandonado o seu corpo. Se não fosse uma vergonha gostava de ter a mãe ali, para lhe soprar nos olhos e lhe dizer que estava vivo. Quando adormece no sofá da sala, lá em casa, tem por vezes, esta sensação ao despertar. Não saber se está acordado, onde está, se está vivo. Mas dura um segundo e passa. Agora não. Agora está morto, ou doente para sempre, doente mental como o primo Tansas que ainda por cima é alcoólico.
Ficou assim quatro dias. O primeiro e segundo dia do ano novo, na casa da praia, depois em casa dos pais e finalmente no hospital. Até que numa manhã lhe veio à cabeça, no meio de tanta angústia, que o que estava a sentir talvez não fosse a loucura mas “a responsabilidade de viver”. E serenou.

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2 Comentários:

Blogger CCF disse...

Tão bem escrito, tão assustador!
~CC~

domingo, fevereiro 05, 2012  
Anonymous Anónimo disse...

resumindo adorei adorei adorei

os putos só existem no 11º?

o resto é tudo velhadas com pretensões à mortalidade em folhas de enrolar castanhas?

terça-feira, fevereiro 07, 2012  

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