*?!!#$Boinggg, como na banda desenhada
publicado no jornal i, sábado 24 de Março
Em 1963, Diane Arbus tem 40 anos e concorre a uma bolsa da Fundação Guggenheim. A carta de recomendação que Lisette Model escreve a seu pedido, começa assim: “Os fotógrafos podem ser bons, maus, excelentes, de primeiro plano, ou formidáveis, mas há poucos artistas entre eles. Eis uma excepção.” Diane Arbus era uma excepção, uma grande artista americana do século XX. Uma enumeração dos seus interesses e modelos, dos homens e mulheres com quem trabalhou ou partilhou projectos bastaria para mergulharmos nas profundezas da existência humana, ou, para usar as suas palavras quando anotou nos cadernos a experiência no campo familiar de nudistas de Sunshine Park, New Jersey: como se entrássemos numa alucinação sem saber quem alucina.
Campos e congressos de nudistas, colónias de férias de pessoas com deficiência mental, jardins públicos sujeitos a vários tipos de ocupação que percorreu metodicamente durante meses, estações de comboio, grupos de rock, circos, o Museu Hubert onde conheceu o anão russo Andrew Ratoucheff, a sociedade dos Compositores, Autores e Artistas da América e a sua presidenta nacional, os campeonatos de dança do salão e o jovem par laureado, o congresso de gémeos, as irmãs Gish, a viúva Betty Blanc Glansbury, o patriota com a bandeira, a criança distónica com uma granada em cada mão, a sex-symbol Mãe West aos 72 anos, putas e travestis. Ela queria fotografar toda a gente. Quando concorria a uma bolsa classificava os seus modelos como elementos de uma “antropologia contemporânea” mas, mais prosaicamente, era a fotógrafa dos “freaks” que lhe chamavam. E quando, finalmente, foi exposta no MOMA, os homens da limpeza tinham de chegar mais cedo para limpar o desprezo cuspido nas suas fotos.
John Szarkowski, que desde 1962 até 1991 foi responsável pelo pelouro de fotografia do Museu de Arte Moderna de Nova Iorque, foi o primeiro a comprar fotografias suas para a colecção permanente e a dar-lhe um estatuto respeitável. Mais tarde organizou a exposição New Documents, reunindo-a a Lee Friedlander e Garry Winogrand e escrevendo textos fundamentais para legitimar esta geração.
Marvin Israel foi outro seu amigo desde os últimos meses de 1959. Durante anos escreveram-se todos os dias. Martin era responsável pela revista Harper’s Bazaar onde promoveu artistas como Diane, Robert Frank, Lee Friedlander ou Andy Wharol. Esteve por detrás de quase todas as exposições de Richard Avedon nas décadas de 70 e 80. Foi crítico de arte, artista gráfico, curador, pintor, e está representado no MoMA e no Art Institute of Chicago. Num postal reproduzido na Cronologia que Elisabeth Sussman e Doon Arbus escreveram para o Museu de Arte Moderna de S . Francisco e depois para as retrospectivas que no último ano têm percorrido algumas cidades europeias, podem ler-se, datadas de 1960, as seguintes palavras de Diane para Martin:
“Foi um espanto sermos de tal forma judeus, ricos, burgueses e de boas famílias, abandonar tudo isso por caminhos de perdição que nos levaram à casa de partida, para finalmente cairmos um nos braços do outro. Como se diz na banda desenhada: *?!!#$Boingggg...”
Boingggg. Na tarde de 28 de Julho de 1971, Marvin Israel, depois de lhe telefonar sem obter resposta, entrou no apartamento e foi o primeiro a encontrá-la morta. Nenhuma carta de despedida. Nenhum motivo forte. Os pulsos cortados, como anunciavam as fotos dos travestis tristes, dos rapazes de rolos nos cabelos, do gigante em casa dos pais, da dança nocturna das bruxas, dos mendigos de rua, dos artistas das feiras populares. Marvin fez alguns telefonemas, entre os quais à polícia, a Szarkovski e a Richard Avedon. No dia seguinte, o médico legista elaborou um relatório completo onde anotou que as faces anteriores dos punhos tinham sido seccionadas transversalmente com três incisões do lado esquerdo e duas do direito, profundas e atingindo vários tendões nas inserções musculares. As artérias radiais e as veias de um e outro lado estavam, no entanto, intactas. As mãos, cobertas de grande quantidade de sangue seco, tal como, acima dos joelhos, a face anterior das pernas. As orelhas e o nariz não apresentavam nada de particular.
Etiquetas: crónicas do i
0 Comentários:
Enviar um comentário
Subscrever Enviar feedback [Atom]
<< Página inicial