22 março 2012

O guião incompreensível



publicado no jornal i no sábado 18 de março de 2012


Era um daqueles filmes que passam nos canais generalistas ao fim de semana e que esquecemos em seguida. Rapaz encontra rapariga no elevador e tenta uma abordagem. Ela mostra-se indisponível. Saem no mesmo andar e ele insiste. Ela mantém a mesma frieza. Não se percebe o que tem ele de errado , o que disse e foi mal dito, o que fez mal feito. Mais tarde voltam a cruzar-se no bar do hotel e, surpreendentemente, ela envolve-o num olhar de simpatia, demora-se, sorri e finalmente muda-se para um banco ao lado dele. A face abriu-se, vêem-se os dentes, os olhos brilham. Como já vi muitos filmes maus, quase posso ver o guião daquela actriz. A página onde ela leu: aproxima-se calorosa. Na vida nem sempre foi assim. Passei a maior parte do tempo sem perceber o guião das mulheres. Tenho quatro irmãs e, em miúdos, tomávamos banho numa tina enorme como a que havia em 8 ½ de Fellini. Mas a proximidade das meninas era ilusória. Eu não compreendia o que elas urdiam, ouvias as suas falas sem entender. Cresceu sempre à minha volta um enredo incompreensível. Não me sentia perdido. Havia comida e roupa que não me envergonhava, uma vez por ano levavam-me ao alfaiate para provar um fato e ao sapateiro, que desenhava um molde do pé em papel vegetal e fazia umas botas que duravam o inverno. A minha mãe e as minhas tias tomavam estas decisões importantes da minha vida. Por vezes ouvia como se aconselhavam com a minha avó ou argumentavam entre elas, serenamente. Nas manhãs de domingo assistia ao milagre da confecção dos alimentos. Os legumes ferviam em panelas, o peixe estalava no forno. Quanto tempo? Como os escolhiam, no mercado, a outras mulheres que conheciam pelo nome? Com que ervas os temperavam? Eu lia, estudava e elas toleravam a minha existencia parasitária. O meu mundo era feminino. Se adoecia era tratado pelas amigas das minhas irmãs, estudantes de enfermagem, que me aplicavam cataplasmas rescendentes ou treinavam comigo métodos homeopáticos. Tinha duas famílias: a família real e um conjunto de pessoas que encontrava nas ruas, quando acompanhava a minha avó nas visitas ao dealer da biblioteca municipal para o abastecimento da dose semanal de Max du Veuzit e M.Delly. De vez em quando um homem desconhecido aproximava-se, cumprimentava a minha avó com deferência e dirigia-me uma saudação de elevado contexto. A minha avó explicava que era alguém da família da minha mãe. Percebi cedo que tinha outra família. A minha família natural e a outra, um conjunto fascinante de aparições fortuitas, a mais frequente das quais era o tio Carlos, saído de Sábado à Noite, Domingo de Manhã, do Karel Reisz, e como o Albert Finney, proletário e musculado. E até a uma fase tardia da consciência acreditei que o homem magro e de voz escavada que aparecia na rua das Fangas, não era o tio César como me ensinaram a chamar-lhe, mas o Cesare Pavese da aba de O Cárcere. Nunca tive problemas em perceber os homens, mesmo que aparecessem, furtivos, das esquinas das ruas da Alta. Na escola primária tinha dois professores. Um era um homem que nunca vi sorrir, usava casacos surrados e me mandava comprar lâminas para a barba. Outra era uma mulher que me levou a decorar textos intermináveis de António Feliciano de Castilho, um romântico que era o seu autor favorito. Lâminas da barba e Amor e Melancolia. Uma peça de metal que brilhava e escanhoava a cara, retirava a espuma e deixava a cara do professor limpa e palavras ininteligíveis, parte de um código críptico de transmissões. Não percebia. Não tinha medo delas, raramente me castigavam, viam-me crescer com benevolência. Mas não as percebia. Não sabia se gostavam de mim. Se eram felizes ou sofriam. Se choravam de alegria ou de insatisfação. Que luto colectivo se abatera sobre elas. As mulheres mais velhas eram especialmente opacas, cobertas, imprevisíveis, caprichosas. Quando me beijavam cheiravam a almíscar e a petróleo. As mais novas eram ainda mais indecifráveis. Sussurravam, admiravelmente sábias e depois saíam de braço dado aos namorados, banais e conformadas. Um dia, nas escadas da casa da Avenida, vi a Eduarda. Ela emprestara-me um livro chamado A Tortura da Carne, com a condição de nunca lhe retirar a capa. Li-o várias vezes e discuti com ela os formalistas russos, sempre com entusiasmo e imensa inferioridade. Nesse dia o Barreira estava a beijá-la. O Barreira tinha uma crista negra, armada na testa com fixador brilhante e usava um casaco de cabedal do primeiro ao último dia do ano. Parecia estar a encher um pneumático, agarrado à boca dela como uma lampreia. Não era uma coisa agradável de se ver. A Eduarda, superior e orgulhosa, a ser tratada daquele modo por um broeiro como o Barreira. Mas elas eram assim. Fazia tudo parte do seu guião incompreensível. Quando já usava calças no verão, as minhas irmãs tomaram a decisão de me preparar melhor para a vida. Ensinaram-me a dançar, falar baixo, perceber coisas elementares como o que querem as raparigas quando dizem que está muito frio, estremecem, ou inclinam a cabeça. Mas nas primeiras festas dançantes, e depois, durante um tempo interminável, não consegui reconhecer nenhum dos passos que elas tinham ensaiado comigo. Nem nenhuma mulher inclinou a cabeça.

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1 Comentários:

Blogger Mané disse...

Tudo soa a belo neste texto. Cheira a colónia de alfazema.

sábado, março 24, 2012  

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