Casa abandonada, segundo Bonirre.
Dr Gica
publicado no jornal i a 7 de Abril de 2012
André Bonirre, tafonomista de imóveis, descreve com a exactidão possível as fases de degradação de uma construção abandonada, a saber: detecção e confirmação do abandono, esvaziamento metódico e caos, vandalismo e novas ocupações, derrocada.
Primeira fase - os sinais do abandono.
O abandono vê-se pela vegetação. O crescimento de ervas daninhas junto às portas ou portões que deixam de ter uso ou o apagamento dos rastos de pneus e dos caminhos de passagem.
Juntam-se outros sinais. Janelas sempre fechadas, poeira ou teias nas vidraças, cortinas esfiapadas, grossas correntes e cadeados ferrugentos, aberturas em redes e outras vedações.
E como prova definitiva do abandono, miúdos à solta nos pátios ou terreiros, vultos comprometidos, farsantes com máquinas fotográficas. São como os necrófagos que rondam os animais moribundos esperando a sua hora, o momento em que se torna evidente que o edifício perdeu toda a sua energia interior.
Segunda fase – o esvaziamento dos recheios.
Declarado o algor mortis do edifício, inicia-se a fase de esvaziamento do recheio, com recurso a ondas sucessivas de equipas multidisciplinares.
As brigadas de fase inicial fazem um trabalho asseado. Os armazéns de matérias primas e produtos acabados são os primeiros a ser esvaziados por verdadeiros profissionais com ferramentaria profissional. Algumas vezes, em edifícios públicos ou empresas desactivadas, são antigos trabalhadores organizados em gangs precários quem passa à acção directa. Conhecem bem o prédio, os circuitos, os depósitos e as dispensas . Aparecem em carrinhas de caixa fechada e alardeiam recursos invejáveis como empilhadores de paletes, equipamento de soldadura e corte – a que se segue a maquinaria das linhas de produção. O resultado são pavilhões vazios e limpos, paredes nuas e no solo apenas os cotos das máquinas mutiladas. Estes grupos trabalham com enorme dedicação. São como Jekyll e Hydes agora cheios de energia predatória em contraste com a placidez da sua existência funcionária. Como as larvas das moscas nos cadáveres sugam o corpo do edifício em decomposição. Quando se retiram vão gordos como pupas e deixam atrás de si um cenário de desolação. Degraus que ruem, paredes e tectos que se abatem.
Segue-se uma fase caótica. O roubo do mobiliário residual, com todo o recheio despejado para o chão, um amontoado de dossiers, facturas, catálogos, folhas de vencimento, fichas médicas, cadastro sindical, actas de reunião, processos disciplinares sumários.
Por esta altura entram as brigadas das infraestruturas - electricidade, canalização, iluminação, comunicações. Esventram paredes, arrancam tudo o que cheire a cobre, levam torneiras, balastros. Tudo o que tenha valor de transacção pode ser saqueado. As paredes que restam ficam cheias de marcas, atingidas por rajadas de metralha desta guerrilha de pilhagem. Esta fase termina com o trabalho individual de pequenos respigadores por conta própria que de entre os detritos aproveitam restos da cablagem eléctrica, fios das bobines dos rotores, migalhas.
Terceira fase – a reutilização
Terminado o saque, repartidos os despojos, os espaços começam a ser visitados por outro tipo de gente, os vândalos pós putrefactivos de fase final. Hordas de putos destroem meticulosamente os vidros à pedrada, os jovens da adrenalina travam batalhas de paint ball, erguem trincheiras e barricadas inspiradas nos vídeos dos marines, deixam pinturas gestualistas, fazem gincanas radicais com saltos em duas rodas, uma ou outra rave.
Nos intervalos dos eventos, os sem abrigo entram e agacham-se, malta da seringa que faz fogueiras para aquecer, defeca nos cantos como os gatos asseados e vai embora com os canitos a cordel, deixando para trás roupa a secar, um número surpreendente de sapatos desemparelhados e um cheiro único que anuncia outra putrefacção.
Última fase – a derrocada
O telhado deixa infiltrar as chuvas e as águas corroem as traves até ao desabamento. Poucos recordam a casa que ali houve. E estes são como os despojos amontoados: telhas quebradas, muros, entulho. Ervas daninhas.
Etiquetas: Crónica do i
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