16 abril 2012

O lugar de onde fala



publicado no i de 14 de Abril de 2012

Não sei como funciona o esquecimento. Mas surpreendo-me sempre com a extraordinária capacidade que tenho para apagar os acontecimentos negativos, dolorosos, humilhantes.
Nunca suportei a ideia de que podia ter inimigos. Que existisse, algures, alguém a quem, inadvertidamente, tivesse feito mal, prejudicado, ultrapassado de forma menos correcta e que me detestasse , perseguisse, ou desejasse a minha desgraça. Ideias deste tipo nunca me ocorreram. Se alguma vez a realidade me trouxe algo de semelhante foi com vigor que recalquei e esqueci completamente tais sucessos. Magoaram-me, duas ou três vezes na vida Mas, sinceramente, não me lembro. Digo que me magoaram por ser altamente provável que isso tenha acontecido. Mas não me lembro. Privaram-me da liberdade por duas vezes e fui, de certa maneira, torturado . Mas quando chegou a vez de serem presos os que me tinham atormentado, estava tão ocupado que não me passou pela cabeça perder tempo com vinganças que, mesmo hoje, seriam sempre abjectas e deslocadas. Por vezes, raramente, escrevo sobre a realidade. E acontece-me registar cenas da minha vida que , algum tempo depois, encontro. São resquícios de um tempo quase sempre desinteressante. Podiam ser de outra pessoa. Leio-os com estranheza. Se acontecem assinalar sentimentos, estes são-me absolutamente alheios. Tão longínquos como se não fossem meus. Não se distinguem das recordações literárias , ou de conversas que ouvi a outros. O passado não é apenas uma terra estrangeira. É um terreno de analgesia e anomia. As escassas recordações que convoco são imagens sem conteúdo afectivo em que alguém como eu esteve envolvido. Vejo-me sempre outro, novo e mais ágil. Alguém que reconheço como eu embora sem qualidades que o distingam. Ao contrário, se por acaso nos dias de hoje um vidro me reflecte, sempre me espanto. Dizem que a partir de um certo momento temos a cara que construímos. Quem construiu esta cara actual é digno de comiseração. Não haverá bondade em mim, como me disseram, apenas crueldade e auto centramento, vontade de agradar sem os recursos necessários para o conseguir? O meu eu fragmentado não tem passado. Nenhum passado a que se agarrar. Nem cheiros, nem sabores, nem sentimentos. Algumas imagens. Minhas ou de filmes que vi, ou de histórias que li ou ouvi. Uma imagem poderosa é a de Pierrot le fou (Godard, 1965), quando Ferdinand pega fogo ao rastilho da dinamite em que envolveu a cabeça como um turbante, e, logo de seguida, mas tarde de mais, se arrepende. O jogo e a realidade. O jogo que podemos manipular, repetir desde o princípio, recriar, embelezar, voltar a contar e a realidade disparada para o futuro, inelutável, ardendo como uma mecha no final da qual está uma explosão e no centro dessa explosão o nosso maior bem, o pobre cérebro, louquito, enlouquecido, julgando brincar, impune, e afinal vítima da brincadeira absurda. Nem tudo era desprovido de sentido e de efeitos verificáveis. No final havia uma explosão e a seguir a escuridão e o silêncio de onde viemos. A escuridão, o silêncio e a neutralidade térmica. Nem o calor que amolece nem o frio revigorante.
Não há nesta minha infinita capacidade de perdoar nenhum altruísmo, ou postura cristã. Dou a outra cara mas não o faço por humildade. Simplesmente esqueci a dor da bofetada. Só recordo o calor da mão. Sou um parvo feliz sem mérito, porque a minha felicidade é biológica e resulta do decaimento da ofensa e da desconsideração. Operada pelo tempo. Pouco tempo.
Sou conciliador. A única coisa que me irrita num debate é a inexistência de sentido ou racionalidade. A falta de lógica interna. A inconsistência formal. A falsidade. Se o meu adversário tiver alguma razão, no meio de uma argumentação fraca, é seguro que acabarei a sublinhá-la. Fascina-me a razão dos meus adversários. Sou um traidor potencial.
Esta volatilidade do meu eu estou sempre a encontrá-la nos outros. Não falo do carácter. Falo dos corpos e da sua inconstância. Falo da confusão do tempo. Ocorre-me que, para se perceber o que cada um de nós quer dizer, é muito importante que se explicite o lugar de onde o faz. Eu falo quase sempre do segundo andar de uma casa da Avenida. Enquanto escrevo estas palavras ouço a alegre algazarra das minhas irmãs , que se preparam para a ida ao concerto do grupo escocês e cantam Let’s get out of this country . Vera a mais velha, vem-me pedir uma opinião sobre o vestido, zombeteira. E mesmo sem franzir os olhos, vejo-lhe a cara vincada pela sombras, a anca mais larga, os dedos infantis manchados. Vejo tudo da frente para trás e daqui para a frente. A minha mãe lê o jornal e tira os óculos. Fotografo-a à espera de ser desmentido pelas imagens. Mas ao rever as fotos ela é sucessivamente a rapariga que nunca sorri , a mulher que escreve com uma Parker 21 , a professora do colégio Portugal, a que não verte uma lágrima, sentada numa cadeira do parlatório do Aljube. E , embora ainda não o saiba, é também a votante mais antiga da freguesia, a que viu cair as pontes levantadas para o futuro, fechar as mercearias, os talhos e as retrosarias, as lojas da rua do Comércio e as sedes dos partidos operários e camponeses. Está zangada. O meu pai chegou, eu já devia ter lavado as mãos e estar sentado à mesa. Ralha-me, mas serei perdoado.

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