25 junho 2012

Elogio dos que lêem no metro




crónica do i (suplemento LiV)

Sant Andreu , Fabra i Puig, Sagrera.

O homem de casaco de bombazina, jeans retalhados, colete e botas pretas de cano médio, lê. Há mais pessoas a ler. Gente da terra. Só gente acostumada consegue ler no metro, calibrar os pedaços de leitura ao tempo dos percursos. Não levantar os olhos nas estações intermédias nem se alvoroçar com receio de não conseguir aceder à porta, não esquecer o espaço entre a composição e a plataforma, ouvir e não ouvir a voz que anuncia a próxima estação , Gloriès. O homem do casaco de bombazina parece um cavalheiro inglês no continente. Mas, mergulhado na leitura, deve ser um residente, alguém que vive na cidade há tempo suficiente para não levantar os olhos com o balouço da carruagem. Conto os leitores, nesta viagem da manhã. Trinta por cento, predomínio de mulheres. Mais do que em Lisboa e Paris. Menos do que em Berlim . Há profissionais, com livros encapados, marcadores de página, headphones. Há executivos que dão uma última olhadela no relatório. Investigadores que folheiam um artigo. Começaram a aparecer os ipads e os kindles. Marina. Fixo –me numa mulher de traços marcados. É alguém numa altura da vida em que se começa a construir o rosto e os traços que acentua pode ser belos. Se esta mulher tiver qualidades morais, se for inteligente, os traços peculiares da sua face podem ganhar encanto e tornarem-se atraentes. Isto é, alguém que a ame, pode achá-la bela. Lê um livro impróprio para o metro, de capa dura e letras pequeninas. Não consigo identificar o que lê. Quase nunca consigo, embora não desista, o que é uma fonte de inquietação e de alívio. A mulher levanta-se e vejo que é magra e mais alta do que imaginara. A camisola descobre o ventre, como se usa nestes anos, e ela puxa-a instintivamente, como há 50 anos as mães ou avós destas mulheres faziam com as minissaias que começavam a usar. Há um instinto que leva as mulheres a ocultar o corpo e um comportamento civilizado que as impele a desvendá-lo. Urquinaona. Ela ajeita um casaco de antílope fino e, com a mão livre, prende o cabelo atrás, preparando um rosto todo-o-terreno, para a cidade. O metro, o livro pesado que guardou na carteira são ainda uma extensão da casa, um lugar semi privado. Ao entrar no espaço público profissional a mulher prende o cabelo, um dos gestos femininos mais perfeitos, que deve o seu potencial erótico ao gesto simétrico de o soltar.

Hoje mesmo Perfect apanha o U-Bahn em Sophie-Charlotte. Espanta-se com a quantidade de gente que lê. Sorri , como sempre, sorriso completo com dentes e desta vez sem sombras porque tem um namorado novo e um país que ainda não conhece. Deutsche Oper, Bulowstrasse. Perfect olha cada um dos leitores e pensa : - Gosto de vocês, reconheço-vos pela forma como tocam os livros e os folheiam. Enterneço-me. Nunca imaginaria ser possível ver um homem ler Stendhal no U-Bahn da linha de Pankov.
O homem levanta os olhos e encontra o espanto divertido de Perfect. Entreabre os lábios como se fosse falar. Ela ri-se, ruidosamente, com um movimento hábil da cabeça que agora engloba o namorado novo, assim incluído a tempo naquele círculo de leitura. Stadtmitte.

Solférino. Está sentado com os joelhos juntos e o tronco na vertical. Tem o livro pousado sobre as coxas. As mãos que seguram o livro são brancas e ao olhá-las vem à cabeça a palavra céreas. E a palavra emaciadas. Vaneau. Sob as unhas, em quase todos os dedos, há pequenas equimoses. Iéna. Quando levanta a cabeça mostra dentes incrivelmente brancos, brilhantes, com um canino ligeiramente saliente. A cabeça glabra tem um brilho diferente. Todo ele é um ponto de luz no espaço atordoado do metro. Lê Paris Nunca se Acaba e eu perco-me no esforço de tentar encontrar a passagem exacta que ele acabou de percorrer com os olhos e só me vêm à cabeça aspectos secundários do livro, como aquele em que Ben Barka é raptado pela polícia francesa à porta da brasserie Lipp para nunca mais ser encontrado, ou a forma como os espirituosos do bar do Ritz, cinquenta anos depois de Hemingway o ter libertado, se riram de Vila-Matas e da mulher . Port-Royal. O metro vai tão cheio que nenhum artista deambulante se aventura à misericórdia dos transeuntes. E transborda das personagens literárias que os leitores do metro transportam consigo. Invejo estes leitores. Lêm os livros certos, os livros que passam pela prova real da leitura do metro, da leitura fragmentada e granular. Embora me pareça que lêm Borges . Algum deles pelo menos deve ler e na incerteza em que me encontro, penso que todos podem ler Borges. Um conto em que o leitor lesse a viagem de um homem obscuro, de olhos esforçados, viciado em compreender, hipnotizado pelo movimento de balanço do comboio nos túneis, a noite eterna do subsolo, as vozes sempre as mesmas repetindo as estações da literatura, Ternes, Courcelle, Monceau, Sévres –Babylone, Zola, Plaisance, Denfert-Rochereau, até à estação final de uma viagem que sem cessar recomeça numa cidade subterrânea, fourmillante cité, onde é impossível esquecer o blitz de Londres, o relato do achado macabro de Austerlitz, o rapaz brasileiro da mochila atingido de morte, as altas figuras esquálidas saindo queimadas , bamboleantes, do braseiro e caminhando nas ruas de Londres como Kim Phuc e os meninos do Vietnam ardendo no napalm.

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