25 junho 2012

O tempo




publicado no jornal i (suplemento LiV)

O tempo não existe. O tempo passado não existe a não ser na memória dos seres com memória. De uma coisa que só existe na memória não se pode, verdadeiramente, dizer que exista. Grande parte da nossa existência assenta nesse esforço de preservar, estruturar, refazer o passado. Antes de tudo o nosso passado pessoal, depois o passado colectivo. E à medida que envelhecemos, ou que dominamos e ligamos acontecimentos do passado, assim nos parece que ele se torna próximo. Primeiro o tempo das gerações com que chegámos a contactar, depois torna-se próximo e familiar o tempo mais longínquo a que eles se referiam, e a seguir, por aproximações sucessivas, podemos construir a ilusão de perceber todo o duro tempo dos humanos na Terra. Este esforço de domínio e compreensão do passado socorre-se de uma operação de redução e simplificação. O mundo reduz-se ao mundo conhecido, como sucedia aos nossos antepassados antes da primeira mundialização. Aflige-nos não saber exactamente o que se passou na ilha da Páscoa, em Copan ou no Chaco Canyon, nas terras dos anasazi ou dos maias antes da extinção. Mas recuamos se o pensamento nos leva para Timbuktu e Jenne-Jonoo, para o grande Norte, para o Oriente, esse outro Mundo onde talvez se pensasse e vivesse de forma diversa. Alguns dos humanos, que escavam esqueletos, alimentos e utensílios fósseis, vão verdadeiramente mais longe e podem tornar-se coevos dos nossos ancestrais, sentirem a sua proximidade e receberem em cheio, na cara, o vento do tempo e o seu canto.

The past is a foreign country: they do things differently there. É a frase fascinante com que se inicia The go- between, o livro de L.P. Hartley que haveria de inspirar o filme desse realizador chamado Joseph Losey, ele também nocturno e diáfano. A voz dessa frase é a de um homem que se revê na infância remota, levando de um para outro lado uma mensagem que não compreende, enquanto canta sem cessar um estribilho que anuncia a desgraça : Delenda est belladonna.
Por mais que o representemos, sabemos que este passado que recuperamos pode não ter existido e, quando estamos sozinhos, desconfiamos das suas representações, das relações de causalidade entre os acontecimentos que evocamos, do seu fluxo, da sua inteligibilidade. Cresce no passado uma planta maligna.
Na Montanha Mágica, a reflexão sobre o tempo surge logo após o diálogo entre Hans Castorp e Clawdia Chauchat, nessa noite de Carnaval em que finalmente travam conhecimento e a meio da conversa falam francês, como se esse fosse a língua franca dos amantes. Pelo menos é essa a esperança ingénua de Castorp, que escolhe a forma de tratamento como tema de conversa e ao tratar por tu a russa no primeiro encontro, lhe quer dizer com isso, de forma juvenil, que esse tu é (citação) le Toi de ma vie, mon rêve, mon sort, mon envie, mon éternel désir.
O resto é conhecido. A senhora Chauchat, com o rapaz ajoelhado, disse-lhe qualquer coisa sobre a febre que ele iria ter nessa noite e saiu, batendo com a porta. No dia seguinte partiria para o Daguestão, terra de residência do marido, que supostamente custeava as estadias no Sanatório. Ao descrever a sua partida o narrador diz por três vezes que ela foi transitória (em itálico). É assim que nos referimos ao futuro. As nossas expectativas, os nossos desejos, aquilo em que depositamos esperança de realização, deviam vir sempre em itálico, para que o leitor percebesse que se trata de votos piedosos, matéria de fé, destinada a realizar-se ou não, de acordo com o acaso, o voo das aves, a sorte das cartas.

Resta-nos o presente. Mas se nos detivermos um pouco sobre este assunto, facilmente percebemos que, quando tentamos capturar o momento presente, ele se escapa como a sombra ao néscio, e se alguma coisa agarramos é o passado. Podemos decompô-lo sucessivamente. Mas mesmo esse instante que é um relâmpago, um estampido, um estremecimento da mente, quando o analisamos já não está presente, ou apenas como o mostrador de um relógio quebrado. Esta reflexão parece-me tão difícil de rebater, tão independente de outra coisa que não seja o livre deslizar do pensamento, que seguramente já ocorreu a muitos homens, filósofos ou não.
Quando percebi que o tempo não existia, o mundo material deixou de fazer sentido. Se as tragédias e os momentos de felicidade só existem verdadeiramente na fracção milionésima em que podem ser algo mais que passado, então mesmo as nossas piores penas são suportáveis, e volúveis as nossas alegrias.

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