18 julho 2012

Os pés das Filhas de Marília





publicado no jornal i (suplemento LiV)

Como qualquer outra pessoa apercebo-me de que muitas mulheres usam agora, nos meses de verão, os pés nus. A exposição desta parte do corpo pode, seguramente, ser observada a partir de diferentes pontos de vista, alguns dos quais me escaparão completamente. Ela foi tornada possível com o desenvolvimento dos cuidados especiais podológicos, da indústria do calçado e da ideologia pós feminista: cremes dedicados, utensílios especiais de higiene, exfoliação , vulgarização e acessibilidade aos pédicures, podologistas e podiatras e, por outro lado, produção de belos exemplares de sandálias que conciliam a nudez com a actividade profissional da mulher. A exposição do pé nu em sandália constitui uma notável afirmação cultural e biológica da mulher libertada. Sendo o pé feminino mais pequeno do que o masculino a acentuação dessa diferença constituiu, no passado, um sinal de feminilidade que, em alguns casos assumiu aspectos trágicos. Durante mais de mil anos as crianças e adolescentes chinesas de alta linhagem foram submetidas a uma tortura metódica e sistematizada até obter uma deformidade podal incapacitante, apelidada de Lótus Dourado. Na versão original de Cinderela, as filhas da madrasta não hesitaram em decepar o halux para que os pés coubessem no ridículo sapato que o príncipe reservava à futura rainha. António Lobo Antunes, na Explicação dos Pássaros, um livro de 1981 que podia ter-se chamado Casei com uma Comunista ( e suicidei-me), descreve assim os pés de Marília : nunca topei com pés tão grandes…, de unhas achatadas e largas, semeados de gretas, pés de palmípede na outra ponta do lençol, (p29) ou, pés enormes de camponesa, de dedos muito afastados, quase róseos (p 101) . Marília, filha de um guarda republicano, uma mulher de poncho vermelho e socas veementes, em oposição à Tucha da Lapa, a primeira mulher, cujos pés pequeninos nunca são descritos.


Ora o que as mulheres contemporâneas fizeram foi recusar essa redução. A palavra de ordem passou a ser: pé em sola rasa. Liberto da contenção do calçado mas sabiamente exposto, sem fungos nem bactérias, o pé feminino tornou-se uma zona preferencial de representação de feminilidade, independência e elevado estatuto.

O pé envelhece menos que o pescoço ou o ventre. O tónus dos músculos das pernas e dos pés conserva-se mais tempo e o facto desta zona do corpo ter menos tecido subcutâneo preserva-o de rugas e laxidão. As manchas senis são mais fáceis de ocultar. Como o escrutínio dos pés não é tão fácil, as mulheres menos jovens mantêm mais tempo uma aparência juvenil nessas zonas do corpo.

Gosto das mulheres capazes de usar sandálias rasas. Antes do mais dão uma saudável prova de confiança. Em si próprias e nos cidadãos que com elas partilham a existência. Depois mostram a escrupulosa higiene. Finalmente assinam um manifesto de feminilidade pós-biológica. Vejo que qualquer pequeno defeito lhes é perdoado e por vezes objeto de ternura especial. Como se a revelação de uma imperfeição suscitasse compreensão e afecto, mais do que afastamento ou reprovação. O neo-pé feminino pode ser grande. Os tornozelos estreitos, com maléolos bem salientes. O dorso do pé desce em declive não excessivo e adivinham-se algumas veias e tendões. A arcada plantar está bem marcada, quase cava. A parte anterior do pé pode alargar, mas só ligeiramente. Os dedos de tamanho decrescente, do primeiro ao quinto. As unhas ovaladas. O quinto dedo conserva uma discreta abdução, quando o pé recebe o peso do corpo, se apoia e prepara o impulso. O pé ocupa a sola da sandália e apenas esta, nem mais nem menos. A pele está ligeiramente bronzeada, ou pelo menos não lembra o inverno e a pele das galinhas.

Encontrando-me há uns tempos envolvido no estudo dos pés das mulheres tive de fotografar alguns exemplares para uma exposição. Tinha de procurar pés que pudessem ser expostos sem desencadear nenhuma reacção especial. Nem exercício erótico nem anatómico, nem gabinete de podologista nem anúncio de sapataria. Tinha de ser alguém que não fosse nem excessivamente jovem, para não permitir a mínima sugestão pedófila, nem demasiado idosa para afastar leituras sobre o envelhecimento ou a melancolia. A maior das limitações era obviamente o reduzido número de mulheres que eu conhecia nesta faixa de opções, a forma de solicitar a sessão fotográfica e, sobretudo, as prosaicas questões logísticas para a levar a cabo.

A minha primeira escolha recaiu em Carmo. Tem 27 anos, é saudável e não confundiria o meu pedido com a tentativa canhestra de obtenção maiores favores. Pedi-lhe mesmo assim:

-Preciso de fotografar os teus pés. Sim, os pés. Só os pés. Com alguma urgência, nos próximos dois dias.

Ela pareceu concordar. Só estaria disponível no segundo dia. Mas talvez pudesse, ao fim da tarde. Como estávamos no verão, o fim da tarde reunia ainda condições para poder fotografar com luz natural. Artur, o meu fotógrafo, não poderia obviamente estar presente. Deu-me demorados conselhos sobre iluminação, fundos e dificuldades que iria encontrar. Disse-me para treinar. Com quaisquer pés. Achei a última sugestão deselegante. Não se treina com nenhum pé, nem isso é coisa que se possa pedir. Irritado, Artur disse:

- Treina com os teus e com um espelho.

Nessa altura lembrei-me de que não tinha nenhuma ideia precisa de como eram os pés de Carmo. É uma loura interessante mas não me lembro de alguma vez lhe ter visto os seus pés. Presumo que são lindos, ou a reacção teria sido outra. Ou isso é indiferente, para as filhas de Marília?


(continua)





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