23 setembro 2012

Em vão



(Helmut Newton)

Entre a multiplicidade de imagens  das manifestações do passado fim de semana há duas que quero aqui evocar. A primeira, captada de vários ângulos e que só tardiamente, e na versão mais delicodoce, surgiu fora das redes sociais, mostra uma rapariga, Adriana, que se aproxima de um dos superpolícias de guarda à delegação do FMI,  e o abraça.  Ela é frágil, o cabelo cai-lhe sobre os ombros, o braço poisa no corsolete de couro e a mão direita, aberta , apoia-se na coracina. Ao pé dela, de pose e uniforme de gala, o homem é enorme. Algo entre um samurai e um homem estátua. Um guerreiro temível e um PT amigo das senhoras.  Braço musculado e uma manápula moderando o braço da rapariga. Ou, já que estamos em época de Tomas Tranströmer, “usava um capacete abaulado/ como um hemisfério/ a aba ao nível do equador”.  Esta imagem é útil para falar do papel da polícia nestas manifestações. A presença ostensiva de um helicóptero sobre o povo da capital pôde , no início, ser intimidatória. Mas quando as pessoas, que ainda se enrolavam na pequena Praça José Fontana, deixaram de ser contáveis e ocuparam todas as faixas de rodagem da Avenida da República, foram tocadas pela graça da imunidade  e, a partir desse momento, o heli pareceu voar em torno delas como uma barata tonta. De resto, os polícias estavam calmos, contagiados pela  evidente não beligerância dos protestantes. Nos momentos mais graves, quando o hino da República foi cantado frente ao FMI, a preparação dos polícias veio ao de cima. Porque houve mais do que o avanço  da rapariga do cabelo frisado. Choveram tomates e um petardo e eles mantiveram uma admirável impassibilidade.
A manifestação de Lisboa acabou na Praça de Espanha, em anti clímax. A incrível ocupação do espaço contrastava com a ausência de meios acústicos, de liderança e organização (como inevitavelmente  foi sublinhado). O carácter espontâneo do protesto, a sua maior força, era também a sua debilidade. Faltou a voz que traduzisse aquela raiva em palavras e propostas . O que é em si uma coisa boa, pois, tal como num work in progress, a obra está ainda aberta à multiplicidade de leituras e blindada a tentações caudilhistas.
A anomia foi contrariada por uma vanguarda que, assaltada pelo síndrome da Bastilha, rumou a S.Bento onde já não estava a Assembleia Nacional  nem as Cortes.

O mesmo anti climax devem sentir os polícias. Anos de treino para dar porrada e, quando as condições objectivas estão reunidas , o programa é de contenção. A fotografia do abraço entre Adriana e o centurião, uma exibição poderosa do dimorfismo sexual da espécie, tem várias leituras, algumas perversas. Numa, ela, seguidora do Zeitgeist, segreda-lhe:
- Vocês protegem a Ordem, nós queremos destrui-la. Completamo-nos, devemos entender-nos.

Quando os bolcheviques tomaram o Palácio de Inverno encontraram uma cave com os melhores vinhos da Europa. O primeiro regime de soldados , operários e camponeses começou numa ressaca de grandes colheitas. Se os manifestantes tivessem tomado a sede do FMI encontrariam um apartamento com mobiliário de escritório e coca cola na geleira. Não é a mesma coisa. E aqui voltamos às imagens fortíssimas. Uns momentos antes das objectivas terem registado o abraço de Adriana ao seráfico guerreiro, uma outra mulher cantava a Portuguesa, à beira das lágrimas. Quando lhe perguntaram porque chorava, ela disse:
Porque vai ser tudo em vão. Como sempre.
E tinha razão, embora as suas lágrimas merecessem outra sorte.  Quem  governa é o dispositivo económico, como explicou Giorgio Agamben em O Estado de Excepção,  e António Guerreiro, no Actual, brilhantemente lembrou. O dispositivo é assegurado pela aliança entre os sovietes financeiros (bancos , seguradoras  e grandes empresas) e o Estado servil. O dispositivo não se perturba com multidões ordeiras , tomates, very lights. Tendo algumas figuras simbólicas - como o Dr. Vítor Constâncio, distraído enquanto governador do Banco de Portugal, na época em que o dispositivo, no BPN e BPP, roubou aos contribuintes portugueses um montante superior a 9.500 milhões de euros, e agora, no BCE, atento vigilante do cumprimento do Memorando de endividamento nacional - o dispositivo é volátil e anónimo. Conta com os seus apoiantes, a sua base social de apoio, os seus ideólogos, assalariados e outros homens de mão. Tudo gente esperta, com a matreirice de quem conhece a história ou julga conhecê-la. O Dr. Aguiar Branco é outro desses. Diz que “gosta de Zeca Afonso” e que “alguns dos seus amigos foram mesmo à manifestação”. A ser verdade, ele não sente o facto como sinal do seu grande isolamento. O seu objectivo é menorizar a indignação. Ter um pé nos interesses e outro na sociedade, através da colagem fácil a alguns emblemas que, acredita ele, já não o podem surpreender ou desmascarar. O dispositivo económico é, na fase actual, compatível com alguns enfeites democráticos, desde que o nosso estado de inanição continue a permitir que dancemos a sua valsa.
 No passado sábado as multidões desceram a Avenida da República e depois inflectiram perigosamente para a Avenida de Berna, sem saber que a Praça de Espanha era a cloaca do dispositivo económico, o lugar onde toca a sineta surda de dispersar e cada um fica de novo entregue à solidão e ao destino final. A menos que ...

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4 Comentários:

Blogger graça anibal disse...

Muito bom!

segunda-feira, setembro 24, 2012  
Blogger J. disse...

Porque é em vão a menos que é que é muito bom, senão seria só bom :)

quarta-feira, setembro 26, 2012  
Blogger Unknown disse...

(gostei)

quarta-feira, setembro 26, 2012  
Blogger maria disse...

muito, muito bom, grande texto. (ou porque me sintonizo inteiramente com ele)

quinta-feira, setembro 27, 2012  

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