Brucia continuamente
Em “Os Anéis de Saturno”, W. G. Sebald escreve que “numa época remota, nas noites de Verão da minha infância em que, do vale, observava as andorinhas a voar no crepúsculo, ainda bastante numerosas naqueles tempos, imaginava que eram as rotas que desenhavam no ar que sustinham o mundo”.
E em “Vertigens. Impressões”, o narrador de All’estero, que confusamente se instalara em Limone sul Garda, diz : “Sentei-me a uma mesa junto da porta da esplanada, espalhei à minha volta os meus papéis e apontamentos e tentei estabelecer linhas de conexão entre acontecimentos muito afastados uns dos outros que me parecessem ser da mesma ordem.”
Um mundo sustentado pelas rotas das andorinhas e onde acontecimentos da mesma ordem, mesmo afastados entre si, estabelecem linhas de conexão. Eis duas pistas para o mundo de Sebald.
Incontáveis enumerações. Descrições precisas de viagens, passeios, percursos, rotas, deslocações aparentemente sem sentido. E de pequenos acontecimentos, relatos, vidas insignificantes. Em All’estero, o narrador parte para Viena. Aí decide tomar o comboio para Veneza, não sem antes ter passado um dia com Ernst Herbeck, de quem sabemos “que passou 34 anos numa instituição psiquiátrica, após o que foi dado como curado”.
Incontáveis enumerações. Descrições precisas de viagens, passeios, percursos, rotas, deslocações aparentemente sem sentido. E de pequenos acontecimentos, relatos, vidas insignificantes. Em All’estero, o narrador parte para Viena. Aí decide tomar o comboio para Veneza, não sem antes ter passado um dia com Ernst Herbeck, de quem sabemos “que passou 34 anos numa instituição psiquiátrica, após o que foi dado como curado”.
Caminham os dois ao longo do Danúbio e Ernst, que inevitavelmente faz recordar Robert Walser em Herisau, ouve com “o paciente desinteresse de quem há muito conhece com todos os pormenores o que lhe comunicam”. Nas aldeias, de regresso, não há ninguém, pois os habitantes estão fechados em casa “entretidos com pratos e talheres”. Passam por ruínas que lembram ao narrador “um crime horrendo” nunca nomeado, um “medonho monumento”.
Quando no fim do dia se despedem, Ernst saúda com um gesto largo que faz o narrador escrever: “Isto fez-me pensar numa pessoa que tivesse passado longos anos no circo.”
Viaja então para Veneza e, no comboio, sonha com um quadro de Tiepolo. À chegada barbeia-se numa casa perto da gare, interna-se em ruelas interiores, com a angústia de quem se afasta do Gran Canale, até avistar San Macuola e tomar à pressa um vaporetto. Reconhece, deitado num banco, Luís II da Baviera, il re Ludovico. No pequeno hotel de Dorsoduro onde se aloja encontra uma mulher em quem deposita esperanças infundadas, pois ela afunda-se numa doença estranha, a peste que assolava Este, no quadro de Tiepolo, ou uma variante grave de gripe. Lê o livro que relata a fuga da prisão de Casanova e as reflexões deste sobre “o claro entendimento”.
Enredado em espantosas coincidências, que uma vez mais residem na forma como os textos de Ariosto e Virgílio permitem a Casanova a elaboração de um manual de fuga, o narrador embarca com um estranho Malachio, astrofísico em Cambridge. Passam em Mestre sob “a luz declinante do mundo” e, frente à Giudeca, o barqueiro mostra-lhe o Incineratore Comunale, “um bloco de betão de um silêncio de morte por baixo de um leque de fumo branco”. Então, o narrador de Sebald faz a pergunta que não o larga, a indagação que percorre, quase sempre em surdina, todos os seus livros: “Perguntei se também incineravam de noite, ao que Malachio respondeu: ‘Sì, di continuo. Brucia continuamente.’”
Alguns anos depois voltou a Veneza, de Veneza a Verona, e acabou por parar em Limone, onde se alojou no Hotel Sole, nas margens do lago, gerido na ocasião por uma tal Luciana Michelotti, de 44 anos.
O que agora vou contar ocorreu no dia 2 de Agosto, na esplanada do Hotel Sole. Voltemos ao início desta crónica. O narrador está agrupando acontecimentos da mesma ordem, mesmo que afastados temporalmente: uma mãe pestífera, uma mulher doente num quarto em Dorsoduro, o homem que vem de Viena e o mestre que vem da Alemanha, o trabalho incessante dos fornos, a prisão e fuga de Giacomo Casanova aos 30 anos. O homem escreve, consulta os seus cadernos, a escrita sai-lhe fluente. Luciana está atrás do balcão a olhar para ele, tem 44 anos e riem-se de cada vez que os olhos se cruzam. Ela aproxima-se com um Fernet e os jornais do dia, que espalha em cima da mesa, passa os olhos por uma notícia local e, em seguida, toca-lhe no ombro.
Talvez tenha pousado uma mão no seu ombro. Ele sentiu a doçura de uma mão pousada no seu ombro. Um breve instante. Um instante que mudou o mundo, aproximou os voos das andorinhas, a chuva que cai sem cessar em Dresden, desde a hedionda noite dos incêndios até hoje, em Dresden, a suavidade, a elegância, a ternura de uma mão que toca, quase toca, talvez tenha tocado o ombro.
Há uma esperança nova para o mundo. Talvez se apague o fogo nos horrendos edifícios, talvez o mal possa ser derrotado, a peste, a doença que o fez perder a mulher em Dorsoduro.
W.G.Sebald, Os Anéis de Saturno e Vertigens.Impressões, Editorial Teorema.
James Wood, A Herança Perdida, Quetzal
Etiquetas: crónicas do i
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