17 outubro 2012

Serena encontra Ian Hamilton no The Pillars


 

 
Na critica literária, ou cinematográfica, é suposto não se revelarem aspectos concretos do livro ou filme em recensão. Quase todos estão de acordo que  a alusão directa à intriga é de mau gosto, e existe mesmo uma expressão que caracteriza os grosseiros que a praticam. James Woods, a propósito de  Ian McEwan, chamou manipulação à capacidade que o romancista tem para esconder factos relevantes da ficção, ou de os ir soltando ao sabor das conveniências e tendo sempre como pano de fundo o controle absoluto do leitor. Esta manipulação autoral  seria, para Woods, um defeito, uma característica de menoridade. Para Ian McEwan, pelo contrario, é o coração da narrativa literária. Nestas crónicas não pretendo senão chamar a atenção de textos, de qualidade diversa,  através dos quais se teceu a malha  onde se inscrevem os mapas do meu mundo. E para isso não tenho de obedecer a regras nem interdições. O último livro de Ian Mc Ewan pode ser lido como uma ficção de espionagem do final da guerra fria, uma  autobiografia, uma crónica da Grã Bretanha dos anos 70, na época dos atentados do IRA e da greve dos mineiros, quando um primeiro ministro esgotado é substituído por outro que iniciava a estrada da demência. Ou ainda, como um romance sobre a literatura. O livro intitula-se Mel em português de Portugal, Serena, em português do Brasil e  Sweet Tooth, na língua em que foi escrito.  Serena é o nome da narradora. Serena Frome, que rima com plume, a linda filha de um bispo anglicano que em Cambridge, num Verão de amor, é recrutada pelo professor Tony Canning para o MI5, o decrépito serviço de informações inglês   As opções editoriais portuguesas para a escolha dos títulos são sempre um motivo de perplexidade.  Porquê Mel? O título original, Sweet Tooth  remete para  o poeta inglês do século XVI, Edmund Spenser, que escreveu The Faerie Queene, um poema épico. O título brasileiro, para a inesquecível narradora, de quem Ian McEwan poderia agora dizer, justamente: Je suis Serena Frome.  Curiosamente, a edição brasileira da Companhia das Letras, talvez devido à presença do autor em Paraty, antecipou-se ao lançamento do livro em Londres. A capa da Cape mostra uma mulher de silhueta atraente e vestido curto, num corredor sombrio, hesitante, sentindo-se perseguida, enquanto ao fundo se recorta, como no quadro de Velásquez, a sombra inquietante de um homem. Já a capa portuguesa da Gradiva, de aspecto antiquado, tem 2/3 preenchidos com um grande plano de uma mulher sensual com o rosto atravessado por madeixas louras. Este grafismo desalmado levanta uma questão que , de várias formas, surge  muitas vezes associada aos livros de Ian McEwan: será aquilo literatura de aeroporto?
Os romances de Ian Mc Ewan desencadeiam uma pulsão de leitura rápida, uma dependência, uma necessidade de mergulhar e  permanecer dentro do seu universo criativo, uma identificação com os personagens, semelhante à que a literatura de aeroporto desencadeia nos leitores que constroem best sellers.
O outro traço ambíguo de Ian McEwan é a perfeição técnica do estilo e da construção ficcional. Mesmo quando os temas são sexo escaldante, adultério, traição, o estilo é quase académico e a emoção controlada e um pouco distante. É no entanto fácil de perceber que ele se vê, e é de certa forma, um herdeiro da grande tradição do romance inglês e continental.
Em Mel, esta proximidade a referentes fortes tem momentos emocionantes. Como quando Serena e o seu avençado, o escritor Tom Haley, encontram Ian Hamilton no bar The Pillars.
Corria o ano de 1974. Ian Hamilton, escritor, crítico, publicista, revisor, apoiante entusiasta do Tottenham Hotspur, acabara de criar the new review, assim, com minúsculas, uma publicação original que durante cinco anos publicaria os jovens lobos britânicos que lograram passar pelo seu crivo exigente. O verdadeiro escritório da the new review era um pub da Greek Street, The Pillars of Hercules. Aí, reuniram-se, de forma inédita no panorama literário da Grã Bretanha, Martin Amis, McEwan, Craig Raine, James Fenton, Bradbury e muitos outros.
O centro dessa animação era Ian Hamilton. Recentemente a Faber editou uma colectânea de poemas seus e na capa podemos imaginar o homem que Serena encontrou e a quem, afinal, dedicou tão pouca atenção. O cabelo caído na testa, penteado para a frente, com a franja que os beatles tinham popularizado 10 anos antes. Uma cara bogartiana, diz Alan Jenkins que prefacia o livro. Um maxilar vigoroso, escreve Serena, na ficção de McEwan. A face de um capo di capi, diz McEwan. O casaco de tweed, uma blusa preta de malha, sem gola, calças de bombazina, as mãos enormes cruzadas e o antebraço apoiado numa mesa onde se vê uma bela edição de um livro sobre Robert Lowell . O olhar perdido, como se murmurasse:
“.It’s Spring and I am sick at heart/ Again, but not because of her.”

Mel, Ian McEwan, 2012, Gradiva e Collected Poems, Ian Hamilton, 2009, Faber and Faber Ltd


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