Uma Ética para a Revolução
O ministro da Saúde pediu
ao Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida um parecer sobre a
fundamentação ética para o financiamento de três grupos de fármacos:
retrovirais para doentes VIH+, medicamentos oncológicos e medicamentos
biológicos para doentes com Artrite Reumatóide.
No preâmbulo do Parecer, o
Conselho explicita um pouco o contexto deste pedido: o famoso Memorando da
Troika exige que se baixe de 1/3 os gastos com medicamentos relativos aos
valores de 2010. Estes três grupos de medicamentos constituem uma fatia
importante dos gastos com medicamentos do SNS e é escusado lembrar o impacto de
qualquer medida restritiva num conjunto de situações como o das doenças
oncológicas que constituem, entre nós, a segunda causa de morte.
Deste pedido não vem nenhum mal ao país nem ele constitui motivo
de espanto. Recentemente o Ministério da Saúde criou Comissões e pediu a outras
já existentes pareceres sobre temas como a reformulação da rede hospitalar, a
Carta Hospitalar, a Carta Hospitalar dos cuidados às crianças e adolescentes, a
reestruturação da Urgência Hospitalar, por exemplo. Estes pedidos ocuparam
dezenas de pessoas que, como sucede em todas as comissões, constituíam uma
mistura um pouco monótona de gente experiente e qualificada, apparatchiks da
actual coligação e novos e velhos ingénuos esforçados. Produziram documentos de
valor desigual, por vezes com alguma publicidade. Até à data, o ministro a
todos uniu com o mesmo destino, um olímpico desprezo, destruindo, com gestão
corrente, as boas intenções que alguns comissários decerto tinham.
A forma de que se revestiu o pedido do Ministro e sua
fundamentação não foram revelados pelo Conselho de Ética, o que constitui a
primeira perplexidade, ou incómodo ético, se preferirem. A que propósito o
ministro pretende um parecer ético relativamente a medicamentos, cujo
licenciamento implicou exigências estritas da Autoridade nacional do Medicamento,
o vetusto Infarmed. Esses medicamentos possuem claramente definidas as suas
indicações. Existem já medidas de melhoria da qualidade da prescrição, visando
a racionalização da terapêutica, através do uso de protocolos e de normas
clínicas em matéria de prescrição de medicamentos e de meios complementares de
diagnóstico e de terapêutica. (as célebres NOCs que, à sua maneira, a Direcção
Geral de Saúde tem vindo a elaborar em colaboração com a Ordem dos Médicos). O
ministério tem possibilidade de recorrer a auditorias terapêuticas, a
avaliações da relação custo-benefício de intervenções terapêuticas, ao controle
da prescrição por sistemas informatizados, a medidas no âmbito da Entidade
Reguladora da Saúde ou eventualmente de institutos independentes. Até onde é
que quis ir, com este balão de ensaio lançado ao Conselho de Ética. Conhecendo
o pendor revolucionário do Executivo era legítimo temer que se tratava, no
campo da Saúde, de um equivalente da alteração da TSU nas empresas.
O Conselho aceitou o jogo, dando como adquirida a imposição a
restrição orçamental imposta pelo Memorando, e produziu o tipo de documento que
se espera destas entidades: inócuo, obscuro, hermético e redondo. Conformou-se com um cenário inquietante não
apenas de “desistência de gastos adicionais, como de substituição,
desinvestimento ou suspensão de serviços ou intervenções suportadas pelo SNS”.
Tudo poderia ter ficado na neblina em que esta navegação decorre se, na sua
formulação, não tivesse utilizado uma palavra: racionamento. Que de imediato
adjectivou: racionamento explícito e transparente.
Apesar disto esta palavra levantou razoável celeuma na opinião
pública ainda existente. Embora alguns comentadores tenham vindo a terreiro
argumentar que racionamento era um conceito do jargão gestionário que quereria
afinal significar racionalização, uma onda de temor percorreu os mais atentos.
Afinal, o Conselho possui distintos membros, médicos e não médicos, para quem a
palavra significa o mesmo que para o comum dos leitores: limitar a utilização.
Esta leitura simplista tem pelo menos duas razões evidentes. A primeira já foi
dita mas repete-se. O Conselho Nacional de Ética aceita discutir os termos do
racionamento de medicamentos para doentes oncológicos, VIH + e reumatológicos,
decorrente do corte de 1/3 imposto pela troika? A segunda é etimológicamente
inevitável. Pois não é o encomendador conhecido como um racioneiro, um
encarregado de contabilidade respeitado pela sua celebrada acção raçoeira?
Etiquetas: crónicas do i
0 Comentários:
Enviar um comentário
Subscrever Enviar feedback [Atom]
<< Página inicial