Belaggio
O sol
apareceu e mudou tudo em
Menaggio. As pessoas começam a sair à rua, caminham na Via
Giuseppe Mazini até Via Castelli onde desaparecem misteriosamente. Em frente, ao longe, Belaggio encheu-se de
uma luz assombrosa, com bosques sombrios de cada lado de uma mancha amarela,
mesmo na corcova do dromedário que divide o Lago de Como. A Maria bebe chá de
menta com uma fatia de foccacio com
azeite. São três da tarde, hora irreal
de um tempo indefinido, tarde de mais
para almoçar nos escassos restaurantes desta época do ano e cedo ainda para o
fim do dia. Parte para Varenna um barco absurdo. Dois botes lentos cruzam-se no
porto e durante um momento alongam-se no fundo luminoso, como se se
espreguiçassem, ou uma amiba se partisse. Vê-se, de todo o lado, o jardim da
Villa Carlota, orgulho de Tremezzo. Se apurarmos a vista distinguimos casais
que se cruzam , nos caminhos do jardim botânico, entre rododendros, azáleas e a memória de
Giorgio, o inspirado duque de Sachsen-Meiningen.Chegam à praça, em pequenos
bandos, crianças em gazeta escolar. Um
pardal hipnotiza uma menina, o irmão ficou a olhar para a sua imagem reflectida
na montra da loja de gelados. A mãe chama o filho. Um homem levanta-se do banco
e vai dar de comer aos pardais. Os casais vindos das ruas do centro parecem
todos ter três filhos, todos da mesma idade. Passa uma mãe com filhos, uma
adolescente de regresso das aulas, um gordo atlético com bastões de caminhada à
norueguesa, um casal de heideggerianos
reformados, uma mulher de cabelos grisalhos, muito alta, de mochila e sorvete,
um casal lento saboreando o lago, o Viegas e a Simonetta, um casal de couros
reluzentes, um casal jovem, assustado, reunindo-se aos pais. Esta miúda está
amuada. A mãe de trombas. A filha também. As trombas da mãe são muito mais
expressivas e eficazes que as da filha. A mãe sabe fazer trombas e a filha tem
muito que aprender com a mãe. Mas, se nos demorarmos neste grupo, percebemos
que o campeão das trombas é afinal o namorado da filha. Ninguém disfarça as
trombas , nesta família, excepto o pai , que é quem vai pagar a despesa, na
esplanada. Um Tarzan, vestido de preto, tira fotos ao lago e olha, pelo rabo do
olho, as raras mulheres bonitas que atravessam a praça. Dois adolescentes , de
pé, segredam a eterna conspiração sexual.
Um casal jovem mas afinal nem tanto - ela transporta um bebé num
marsúpio. Tem unhas verde garrafa e enrola um cigarro, sob o olhar atento da
criança. Quando passa pela mesa onde Maria bebe o chá de menta, o bebé
assusta-se. O pai tem unhas vidro de relógio e Maria pensa em duas coisas ao
mesmo tempo: não vai correr bem a vida destes dois, cujas unhas anunciam um
futuro diverso. E pensa numa palavra que deve ter sido inventada em Itália,
vilegiatura. Deve ser isto, a vilegiatura. Maria vê surgir, da luz da praça, a ininterrupta procissão da
vilegiatura e regista mecanicamente. Mãe e filha, a mãe com arrojada saia de
rendas. Casal sénior com mãe sénior-plus
impondo o passo. Menina de bicicleta pela mão e duas amigas. Menina ao
telemóvel (bis). Artista de porfolio e sapatos arrebicados. Roadster americana,
certamente bela, embora menos que a Vitória de Samotrácia. “Nasceram hoje os
dentes do bebé Mark”. O pai lambe a chupeta que caiu da boca, agora com dentes,
do bebé Mark. Avó e mãe com carro de bebé. A avó empurra . Uma gorda a
rebolar-se no passeio. Um ciclista completamente equipado. Um casal sénior
beija-se. Os jovens em conspiração sexual entram com urgência no abençoado
hostal bistrot. Hostal bistrot, La Dépendance , depois do hall de entrada há de
certeza uma escada que leva aos quartos do primeiro andar. Hostal. Bistrot.
Onde talvez o sexo casual recreativo seja finalmente possível.
Flaubert perguntava, retoricamente, a Louise
Colet: “Quando é que os factos serão registados do ponto de vista de uma
comédia superior, isto é, tal como o bom Deus os vê lá de cima”. Lá de cima não
se vê nada. Onde se vêem bem as coisas é na praça de Menaggio, junto ao lago,
quando a primavera é só uma promessa e os barcos dedicados à travessia, com
destino a Belaggio ou a Varenna, vão vazios ou transportam viajantes
melancólicos, que acreditam na superioridade do lado de lá e viajam para
Belaggio, “ponto vago no horizonte”, como Marinetti, poeta futurista, morto em
1944, um ano antes do fim da guerra, mesmo à justa.
Etiquetas: crónicas do i
1 Comentários:
Estive em Bellagio e Varena em Maio passado. Fiquei com pena de não ter tido tempo para ir a Mennagio. Bonita meditação.
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