19 novembro 2012

Muito pouco, demais





Tony Judt morreu nas circunstâncias dramáticas que se conhecem. Nos últimos meses de vida, enquanto a doença progredia mais rapidamente do que se pensara e o encarcerava num corpo imóvel, ditou e escreveu a meias com Timothy Snyder  o que constitui o livro agora publicado pelas edições 70 com o título de Pensar o Século XX.
O livro  é notável sob vários pontos de vista. Um deles é a informalidade, o carácter coloquial, a livre citação de fontes que sabemos estarem apenas na cabeça de Tony Judt mas através das quais se tece a história cultural e política do Ocidente no século XX.

A certa altura é dito que Spender, ou Inez (Inez Maria Pearn, que durante 3 anos foi casada com o poeta Stephen Spender), escreveu um dia :
“ Primeiro ama-se muito pouco, depois ama-se demais”.
A citação de Spender , retirada da memória à solta de Tony Judt, e que ele situa nas cartas trocadas com Inez, é curiosa. Stephen Spender foi, nos anos 60, co editor da revista literária Encounter. Quando se tornou claro que a revista , com simpatias na esquerda não-comunista, era financiada secretamente pela CIA, Spender resignou e foi considerado como um cúmplice inocente dos serviços secretos americanos na política suja da guerra fria, que se travava ferozmente em termos culturais. O episódio inspirou Ian Mc Ewan na trama do seu último livro, Mel, abertamente autobiográfico. Foi notado que McEwan tem a mesma idade do escritor T.H. Haley,  recrutado inocentemente pela espia Serena Frome  para um departamento dos serviços secretos britânicos e a partir daí apoiado economicamente com generosidade.

Foi assim que, em poucas semanas, Spender  se atravessou duas vezes nas melhores leituras, e, como não podia deixar de ser para quem conhece um pouco da vida prodigiosa dos protagonistas dos anos 60/ 70, com episódios onde se mistura o sexo, a literatura e aquilo a que naqueles anos se chamava pomposamente “a revolução”.
A frase atribuída a Spender é dita a propósito do empenhamento tardio nas causas sociais por parte de algumas personagens do século XX. Jean Paul Sarte, por exemplo, esteve na Alemanha  durante um ano, na década de 30, aparentemente insensível ao facto de se encontrar em  incubação o ovo  do qual viria a sair o nazismo. Este desinteresse contrasta com o entusiasmo com que, a partir da guerra, Sartre abraçou causas políticas, desde a criação do Liberation  até à  direcção do jornal maoista La Cause du Peuple, passando por anos em que viajou, condescendente,  pela União Soviética , persuadido de que o seu silêncio era, apesar de tudo, um contributo positivo para a paz, na época do confronto entre as duas superpotências e da ameaça nuclear.

“Primeiro ama-se muito pouco” é, no fundo, uma frase que não se pode aplicar a Sartre. Ele amou sempre demais, uma legião infindável de mulheres a quem dedicou a sua vida, como a dedicou à filosofia, colocando sem cessar, e de forma original, algumas das questões fundamentais da existência, ou à literatura, como romancista e dramaturgo ou ainda, e de certa forma, como crítico literário, na obsessiva inquirição de Flaubert.

Eu almoço habitualmente em balcões corridos. Ou em pequenos restaurantes onde as mesas estão tão juntas que, à sobremesa, já confundimos as conversas e, se não nos vigiarmos,  respondemos aos nossos companheiros de refeição com temas importados da mesa do lado, confundindo o arroz de espigos com as almofadas de caril, a vida dos outros e os pormenores da sua existência com as nossas atribulações.  Devo a essas mesas, ao meu ouvido indiscreto e à minha vontade de romance, quase tudo o que de importante aprendi nos últimos anos. Os resultados do futebol, a repartição onde se implora para que liguem de novo a água, o gás ou  a electricidade,  a loja onde se compram sapatos de bebé,  os processos que se arrastam no Tribunal de Família, a polícia portuguesa que bate mais levezinho que a polícia espanhola,  a cor do verniz das unhas, a melhor estratégia para namorar dois rapazes ao mesmo tempo,  as vantagens do arroz carolino e a melhor carne para o bife à cortador. E hoje, inesperadamente, os seguintes diálogos:
  Não fujas à questão principal. Amas-me?
- Bastante.
 E, umas garfadas mais tarde:
- Eu amo-te de mais.
- Lamento que digas isso. Eu esforço-me por amar-te  pouco. Muito pouco, mesmo.


Pensar o Século XX, Tony Judt com Timothy Snyder, edições 70, 2012

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