26 novembro 2012

Os leões do Serengeti e a possibilidade frontal



Os leões da reserva do Serengeti, na África Oriental, foram objecto de um documentário recente. Sou sempre tomado por um conjunto complexo de sentimentos, ao ver estes filmes. Factos: Todos os animais estão em extinção, excepto os humanos e os que estes domesticaram e agora criam em campos de extermínio. A extinção decorre do crescimento malthusiano da população humana e das alterações provocadas pela ocupação, substituição de áreas naturais por outras dedicadas à agropecuária, alterações climáticas profundas e poluição, práticas irracionais como a caça e a pesca de animais como troféus, crenças primitivas que identificam alguns animais como inimigos de abate legítimo e indiscriminado (o lobo, o leão).
Vemos os leões do Serengeti como se nos estivéssemos a despedir deles. Pensamos um pouco na vida dos homens e mulheres que filmaram estas imagens, nos seus comentários judiciosos, na face perigosamente queimada pela exposição ao sol inclemente, com lesões pré malignas nos lábios e nariz, conduzindo jeeps coloridos e de suspensão incómoda, tratando os leões pelo nome, conhecendo as histórias de cada família, identificando os machos que rondam os arredores e em breve irão desafiar o leão envelhecido para tomar a liderança do grupo e cobrir as fêmeas. As pujantes leoas esquecerão então os seus leõezinhos sacrificados e emprenharão do seu assassino. Esta visão antropocentrada do mundo natural deve irritar os cientistas de todos ramos e os meus eventuais leitores, seja qual for a sua proveniência. O antropocentrismo é de facto uma visão enviesada.Mas conheço um mal pior: o especismo, a discriminação dos animais não humanos, a legitimação da sua utilização sem limites para a alimentação, vestuário, experimentação científica ou espectáculo circence.
J.M.Coetzee escreveu sobre este tema algumas conferências desconcertantes, criando uma personagem, Elisabeth Costello, uma escritora australiana nascida em 1928 e convidada por várias universidades para abordar a relação entre os animais humanos e os outros. Uma das conferências, justamente intitulada As Vidas dos Animais, viria a ter uma edição autónoma, acompanhada de textos de Marjorie Garber, uma crítica literária, Peter Singer, um dos mais eminentes defensores dos direitos dos animais, e Barbara Smuts, uma antropóloga da Universidade do Michigan que investigou o sexo e a amizade nos Babuínos. E é treslendo Smuts que gostaria de tecer um comentário humano, após o episódio da BBC Natural World a que me referi no início.
Vemos os leões na sua típica organização social: um grupo de fêmeas aparentadas, as residentes, seguidas pelas numerosas crias e dois machos, em coligação, de saudável juba. Perto, alguns leões jovens, nómadas, excluídos do grupo quando tinham 4 anos e desde aí vagueando à procura da sua oportunidade. O macho ou machos do grupo acasalam com as leoas residentes sempre que podem. Isto é, raramente, se acreditarmos nos documentários. As crias lutam ou brincam todo o tempo. Entre si ou com os progenitores, antecipando atitudes e treinando reflexos que serão muito úteis nas capturas e nas verdadeiras batalhas de território.
Por vezes, o leão de juba consegue aproximar-se de uma fêmea, encostar-lhe os ombros poderosos, separá-la do grupo. Percebe-se que se trata de um ritual de sedução. A leoa nunca fita o macho, nunca o encara nem se coloca de frente. No que lhe diz respeito, o reconhecimento e aceitação do par não necessita da visão. Deita-se, agachada , erguida nos membros anteriores, numa postura que o macho interpreta como de consentimento. Então o leão copula-a por detrás, rapidamente. Debruça-se sobre o dorso dela e dá-lhe uma mordidela apaixonada na nuca. Vêem-se os caninos proeminentes e o focinho de leproso simpático. Ela não pestaneja, no curto período de penetração. Não se lhe perscruta nenhum esgar ou movimento que possa ser interpretado como prazer, agrado, alegria, emoção. A impassibilidade é total. Levanta-se sem cerimónias dando fim à cópula. O macho segue-a enquanto pode e ela rosna-lhe inesperadamente, abre ameaçadora a enorme bocarra . Ele afasta-se, resignado. Na verdade, a passividade dela não é absoluta e talvez seja ilusória. A existência da juba nos machos como sinal ostentatório de detenção de bons genes é uma prova de que, também entre os leões, são as fêmeas quem escolhe. E talvez os nossos estereótipos de afecto perturbem uma correcta apreciação do amor entre os felídios. Seja como for, a visão destes episódios deixa-me à beira das lágrimas. Por causa dos leões, e do seu destino trágico. E por causa das leoas, também, e da gratidão que devemos às fêmeas humanas. Foi a sua maravilhosa biologia que impôs os longos preliminares, o estro permanente, a possibilidade frontal.

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1 Comentários:

Blogger Luis Eme disse...

a da possibilidade frontal é boa.

e continua a ser boa. :)

quarta-feira, novembro 28, 2012  

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