Preconceito e Viagem
Há, nos aeroportos, salas de embarque em que toda a gente parece
regressar. Não há crianças, jovens, famílias e a vida está suspensa. O voo é de
curta duração, como o primeiro-oficial não se cansará de dizer nas saudações de
bordo. Voo de curta duração, sem tabaco, sem crianças, sem comida, sem malas. À
entrada do voo estou cansado e não me parece que tenha comprimidos que alterem
a minha visão, se não do mundo, pelo menos daquele aeroporto. Se fosse mulher
tinha pintado os lábios de vermelho absoluto, aplicado uma base milagre,
apanhado o cabelo, aberto os botões da camisa. Mas os homens estão mais
irremediavelmente ligados à carcaça. Penso isto enquanto passa um homem de
cachecol cor-de-rosa. Por um preconceito estúpido para com o cor-de-rosa, não
tenho nenhum cachecol cor-de-rosa. Não tenho, aliás, nenhum cachecol, pelo que
a falta de um cachecol cor de rosa só me assalta, ao ver o homem na fila de
embarque deste voo de curta duração, entre dois aeroportos da Europa central,
onde as crianças e a própria noção de viagem parecem ter sido banidas. Nunca vi
um cachecol rosa no sector de roupa masculina. O preconceito reside exactamente
nisto, em não se ver, em se considerar invisível o que não faz parte do
horizonte limitado das opções. O meu companheiro acidental de viagem, com quem cheguei à fala através de
interjeições que pretendiam reconfigurar o espaço - tempo do percurso, não
considera provável apaixonar-se por uma mulher asiática. Isso não tem nada a
ver com o facto de ter como horizonte um casamento com uma ocidental a quem, de
rajada, fará três filhos e uma interminável licença de parto. Embora trabalhe
na Ásia e encontre mulheres asiáticas elegantes, nunca as viu, verdadeiramente.
O meu preconceito relativamente aos cachecóis cor de rosas não se estende às
camisas cor-de-rosa, nem às camisas de colarinho branco e corpo cor de rosa ou
azul ou de pequenas riscas verticais azuis. Relativamente a essas peças de
vestuário declaro a minha repulsa baseada em experiência e razão. Os usuários,
e isto não é apenas sabedoria de aeroporto, são gente a evitar. As camisas
compram-se com aftershave da mesma marca, e gravatas, cinto, sapatos e relógio.
São falsos sinais, como se diz na psicologia evolutiva. De desafogo económico,
bem-estar e poder. Os destinatários destes sinais são provavelmente jovens, mas
não muito, aspirando a protecção e estatuto social.
O meu companheiro de viagem,
afastado das suas rotas habituais, tem a cabeça em outros sítios. Duvida que a improbabilidade de alguma vez se
apaixonar por uma mulher asiática, mesmo numa das suas campanhas na Birmânia,
seja da mesma natureza da minha cegueira para as peças de roupa masculina.
Gostava de ter uma governanta chinesa, admitiu. E como eu mostrasse alguma
estranheza para com a palavra governanta ele desenvolveu a sua pretensão.
Falava devagar, em frases curtas, inacabadas. Como se a sua ficção se estivesse
a formar naquele momento e procurasse a formulação mais adequada. Nas cidades
asiáticas em que tem trabalhado encontrou algumas pessoas fascinantes. Claro
que existe a limitação da língua. Mas ele conhece algumas palavras das línguas
locais e sobretudo aprendeu as linguagens não verbais dos que vieram dos campos
de arroz para as cidades em crescimento. Olhou-os primeiro com curiosidade, preso da convenção
e do lixo cultural e informativo que tinha armazenado e do pressuposto sexual
que originara aqueles encontros. Depois começou a olhá-los com espanto. E
finalmente, à medida que os meses passavam,
percebeu que os olhava como pessoas e que uma pessoa crescia dentro de
si. Essa sabedoria precisava de recalcar inúmeras aquisições anteriores.
Sobretudo algumas que tinham sido incorporadas de forma insidiosa e que ele
considerava como naturais. Ao mesmo
tempo, para simplificar o processo, os seres humanos com quem se encontrava
estavam eles próprios em elaboração, pela juventude, pela transformação recente
do seu país, o desenraizamento familiar, a solidão, a multiplicidade de
referentes e a sua fragmentação. Isto parece-lhe demasiado teórico,
perguntou-me ele. Um dia estava em casa com uma mulher a quem pagava como
massagista e passámos um filme em que os amantes começam a escrever nos corpos.
Eu já tinha visto esse filme algumas vezes, continuou, sempre com deleite
estético e alguma confusão. Mas só então percebi que a escrita sobre o corpo
significava a construção do corpo, a produção do corpo pelo próprio e pelo
outro.
Eu julgava entendê-lo. Era Marguerite Yourcenar quem costumava dizer que temos, na juventude, o rosto que nos deram e mais tarde o que construímos. Mas era mais forte e mais fundo do que isto o que ele me queria contar. Porque não dizia apenas respeito à face mas ao corpo, e esse processo escultural de modelação/ remodelação surgia mais cedo e era mais estrutural do que eu alguma vez podia ter sonhado. A viagem chegava ao fim. Eu ficara sem tempo para perceber o que tinha afastado o meu companheiro das elegantes mulheres asiáticas ou porque queria ele uma governanta chinesa. Na emergência da aterragem buscámos um epílogo tranquilo para o nosso encontro e separação.
Ele disse-me, para meu sossego, que
estávamos de acordo no desprezo pelas
camisas de colarinho branco e corpo colorido, sobretudo quando usadas por
pessoas cujo nome é Artur.
Etiquetas: crónicas do i
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