21 dezembro 2012

Todos os que ficam à espera têm de levar



O jornal Expresso de 8 de Dezembro publicou no Primeiro Caderno uma reportagem de Rui Gustavo sobre a carga policial que se seguiu à manifestação de 14 de Novembro. No final dessa manifestação, um grupo de pessoas apedrejou durante muito tempo a força policial estacionada nas escadas do Parlamento. Esse grupo, recorde-se, estava densamente infiltrado por polícias à paisana. A carga policial subsequente perseguiu as pessoas pela Rua D. Carlos, ao longo da 24 de Julho até ao Cais do Sodré, onde ainda foram feitas detenções. O jornal entrevistou cinco manifestantes e um agente da polícia. Os manifestantes deram a cara ao fotografo Nuno Botelho: cinco faces corajosas onde é fácil reconhecer a serenidade e a determinação da geração que tem tido um papel determinante na oposição de rua ao estado de excepção. Todos fazem acusações graves ao comportamento da polícia: condições da detenção, brutalidade do comportamento na esquadra de Monsanto. Contam o que se sabe. Não faziam parte do grupo violento. Estavam longe do Parlamento no momento da detenção. Foram algemados. Impedidos de contactar familiares ou advogados. Deitados numa cela, de rojo, com a cabeça virada para o chão. Foram libertados depois de intimados a assinar uma folha em branco. Os polícias não estavam identificados. O jornalista obteve igualmente o depoimento do Agente A., do Corpo de Intervenção: “...Quando veio a ordem para carregar, carregámos e ponto final. O oficial avisou três vezes os manifestantes, e quando chegou a hora, avançámos. Avançámos em ordem, sem perder o tino e sem fazer perseguições. Organizados. Vi gente a largar pedras e fugir. Se dou uma matracada escolho a intensidade com que dou e o alvo que atinjo. Não bato da mesma maneira num indivíduo com um metro de costas ou num rapaz franzino. Numa velhota ou numa senhora....Todos os que resistem ou ficam à espera têm de levar. Quando levanto a matraca é para bater, para atingir. Sou um executor, não sou um juiz na rua, e se a polícia precisa da minha força tenho de agir. Não me arrependo de nada e não exagerámos. Manifestei-me com mais quatro mil colegas contra este governo e não tenho nada contra manifestantes.” O que vemos nesta declaração? Antes do mais uma aparente ausência de animosidade; a porrada legal sem estados de alma; nenhuma ideologia senão a do serviço público. Todas as particularidades são técnicas. Finalmente a defesa da proporcionalidade da agressão e da sua condição de executor: a separação de funções relativamente aos mandantes, decisores e aos outros operacionais: infiltrados, perseguidores. Maria Tengarrinha, actriz de 34 anos, também entrevistada pelo jornal, contou que quando viu a carga policial se sentou no chão e pôs os braços no ar. Para Maria, que não se identificara com o grupo lapidador, aquela posição significava paz, resistência passiva, não-agressão. Era assim pelo menos desde Berkeley, do movimento dos direitos cívicos , das manifestações contra a guerra do Vietname. Essa posição tinha, para Maria, uma forte carga simbólica. Ora, como o agente do Corpo de Intervenção havia de explicar, os “que resistem” ou “que ficam à espera” “têm de levar”. Isto aprendeu o Agente A. nas aulas teórico-práticas da Policia de Intervenção com professores que ensinaram que, pelo menos desde Berkeley, do movimento dos direitos cívicos , das manifestações contra a guerra do Vietname, “ficar à espera” denuncia uma subversão insuportável. “Fui estúpida”, reconhece Maria. Alombou com pontapés, bastonadas e um pastor alemão. Nestes tempos tudo parece simbólico. A manifestação frente às escadarias de S. Bento. O apedrejamento ritual da polícia. A carga policial enquanto coreografia. A perseguição, captura e identificação em esquadra, de alguns manifestantes. Foi assim em Lisboa, com rapazes r raparigas presos no Cais do Sodré, em Madrid, com gente a ser espancada em estações subterrâneas do Metro, e provavelmente em Atenas, embora nós não sejamos a Grécia. Como se no manual das cargas policiais houvesse um capítulo de perseguição onde está previsto um raio, digamos, de 800 metros com evacuação de túneis, transportes públicos e estações de Metro. Ao simbolismo do apedrejamento da fileira brilhante de escudos de PVP, responde o simbolismo da correria, da debandada, dos cães anti motim. O Parlamento é o alvo geral dos manifestantes. O Parlamento representa a vacuidade do sistema partidário de representação eleitoral. A polícia não defende os deputados, essa nulidade. A polícia defende a escadaria do Palácio, a ideia de escadaria e de Palácio. Ora, neste sistema simbólico o apedrejamento representa um protesto mais radical. O que apedreja quer mais do que o dirigente sindical ou do que o cidadão que gritou palavras de ordem e dispersou depois do discurso. Quem apedreja não se sente representado no Parlamento nem na rua. Ouve o ruído da pedra no plástico do polícia. TRÁS! E esse ruído aproxima-se do que afinal queria dizer. Arrancar a pedra da calçada, primeiro passo da desordem. Correr para a linha da frente dos polícias, o friso dos peões de guarda da ordem que o oprime. Atirar a pedra com a balística perfeita. O que apedreja repete o gesto da revolta de Londres de 1780, das revoluções proletárias do século XIX em Paris. Como escreveu Julius van Daal, ele actualiza o velho sonho de Cocagne: um dia os fontanários de Lisboa mijarão vinho clarete (1). A meio caminho entre o cidadão que voltou para casa depois do discurso de Arménio Carlos e o rapaz irado que atira pedras, está Maria. Quando o serviço de ordem desarmou a tenda ela continuou na rua, “a distribuir um jornal de parede”, O Espelho. Os infiltrados da policia, que foram os melhores alunos do curso do Agente A., fotografaram-na doze vezes e hão-de procurá-la nas imagens da RTP. Ao continuar na rua, Maria perdeu a protecção da CGTP e passou a estar à mercê do livro de estilo da Policia de Intervenção, cujo caldo de cultura é uma mistura de relatórios do SIS, com aulas do Ângelo Correia, Nuno Rogeiro e do Jaime Nogueira Pinto e apontamentos de um professor que, quando se entusiasma, é muito parecido com o Futre.

(1) Belo Como Uma Prisão em Chamas, Julius van Daal, ed. Antígona, 2012

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2 Comentários:

Blogger Luis Eme disse...

é demasiado triste tudo o que se passou.

não tenho memória de uma perseguição de S. Bento até ao Cais Sodré, pela polícia.

mas o mais incompreensível é a polícia deixar-se agredir à pedrada durante tanto tempo. também deve vir no seu "livro de estilo", que eles são tudo menos "jotas cristos"...

como conclusão, acho que houve uma intenção clara de assustar as pessoas, para que na próxima vez não saiam de casa. mas até neste aspecto penso o "tiro saiu pela culatra"...

muitos dos agredidos, tal como uma boa parte dos que presenciaram as cenas de violência, ficaram com mais raiva que medo.

sexta-feira, dezembro 21, 2012  
Blogger henedina disse...

Acutilante...
"e passou a estar à mercê do livro de estilo da Policia de Intervenção, cujo caldo de cultura é uma mistura de relatórios do SIS, com aulas do Ângelo Correia, Nuno Rogeiro e do Jaime Nogueira Pinto e apontamentos de um professor que, quando se entusiasma, é muito parecido com o Futre."
Sabemos que está errado tudo o que fazem no país, sentimos que as soluções são funerais da soberania, sentimos que nos estamos a tornar o campo de concentração onde se põe os povos que são filhos de um deus menor...e permitimos. Por isso, crónicas assim são benvindas.
Mesmo que a minha opinião fique anónima quero dá-la.

sábado, dezembro 22, 2012  

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