Não é nenhuma dor, só uma impressão.
Vai no segundo comboio. À frente. Nada no meio da pista. Atrás vão o Tiago, o Mídio Garcia e a Tânia Loura, por esta ordem. Ela vai sempre à frente. Desde a primeira vez. Pôs-se à frente e ficou assim. No segundo comboio, quem vai à frente é ela. Do lado de dentro, no terceiro comboio, nada a Leonor. Vêem-se pelo canto do olho. Não é fácil. Estão a treinar a respiração e há sempre muita água à volta dos olhos e da boca. E vontade de esfregar os olhos. Não se pode. Tem de se levar os braços bem à frente, juntinhos, e puxar a água para baixo, com força. Só assim pode ir a direito e continuar à frente do Tiago. Mas vê sempre a Leonor. Vai mesmo ao lado, chegam ao mesmo tempo. Às vezes parece-lhe que leva vantagem. É impossível que a Leonor seja capaz de um esforço assim. Mas quando os braços vão tocar na parede de fundo, ou a cabeça, que é o que bate quando se distrai, olha sempre para a sua esquerda e é como se olhasse para um espelho. Lá está a Leonor, o fato de banho azul eléctrico dela, a touca, a concentração da Leonor, fazendo o movimento simétrico do seu, impecável no meio da pista, como ela, à frente da procissão de meninas e meninos que se começa a encostar às bóias para parar ao lado dela. E dela.
Hoje ela sentiu a dor na barriga e pareceu-lhe que era aquela dor. Mas nunca acredita. Alguma coisa lhe diz que está curada, não tem doença, apenas aquelas coisas que todas as pessoas têm e de que os pais dizem: não é nada, vai já passar, não penses mais nisso. E fazem uma massagem, não é nada, não penses mais nisso, já está a ir embora, estás a ver, já não é nenhuma dor, só uma impressão, um numa escala de dez. Olhou para a bancada. Hoje a mãe não tinha vindo. A mãe sai do trabalho e vem ter com ela à piscina. Senta-se na bancada e ela vê-a, isto é, quando pode, que agora com a respiração, tem de ficar a ver as bolhas de ar debaixo da água. E quando sai com a cabeça, os olhos ardem e de facto não vê senão o brilho da água, as bóias-laranja que lhe garantem que está a nadar no meio da pista, a sombra da Leonor ao lado. Mas sabe sempre quando a mãe chega e quando está lá, para descer até à borda da piscina, içá-la para os azulejos, chamar-lhe aquele nome que a mãe sussurra quando não está zangada e é um nome que ninguém conhece, que lhe parece ser um segredo entre as duas, o seu verdadeiro nome. E a toalha com que a mãe a ajuda a secar, as meias quentes que insiste em lhe calçar, antes mesmo de os pés estarem secos, e como lhe esfrega o cabelo, de uma forma que deita por terra as más ideias e a deixa aturdida, tonta, mole e cheia de fome para o lanche. Hoje, ela nada, sabendo que a mãe não veio, teve mais trabalho decerto. Terá de se limpar sozinha, vestir sozinha e voltar para a escola na carrinha da classe, com as outras meninas que não ficaram com os pais e os avós, na piscina. Mas na bancada, para lá do vidro, está a menina Glória, a Sextante Cial, que vem sempre com a classe e fica a vigiar durante a aula de natação. E, dando passos largos ao longo da piscina, anda o professor Travessas, de tanga preta e T-shirt branca, com o corpo a cheirar a cloro e os pés como barbatanas, um peixe grande que não para de gritar ordens, largar escamas e incitar os meninos dos comboios atrasados.
Dói-lhe a barriga, não pode negar, sente-se tonta, tem de chegar à parede, onde há pé, e agarrar-se à borda da piscina a fazer respirações até passar este barulho que lhe rebenta os ouvidos. Até se calar esta sirene que ligaram sabe lá porquê. Deve ter acontecido algum desastre porque as pessoas correm ao longo da borda da piscina e estão a apagar as luzes. Como se pode nadar com as luzes apagadas. Apenas com a luz que vem do fundo, que são os olhos dos peixes do fundo das piscinas e só brilham à noite, quando as meninas já dormem em casa e os peixes do fundo se aventuram a sair dos ralos. Tem de arranjar força para chegar à parede. Se não der esta braçada o Tiago vai chocar com as pernas dela. E o Mídio Garcia, sabe-se lá. Vão tirar-lhe a cabeça do comboio, ou tropeçar no corpo dela, enrolarem-se no corpo dela, engolirem a água como agora ela está a engolir. Talvez não consiga chegar à cabeceira, ao lugar da piscina onde há pé. Mas pelo menos às bóias laterais. Estende os braços na direcção das bóias laterais, até à fronteira do comboio da Leonor. Vê o corpo azul que se aproxima e julga ver os braços estendidos para ela, o corpo da Leonor estendido para ela, onde as bóias do comboio confluem. Porque diabo está a arrastar-se no fundo da piscina, que ideia esta de apagarem as luzes todas, como irão os peixes encontrá-la e levá-la para cima, Splash, ouve o barulho de um objecto pesado a cair na água, lá em cima ao fundo, ou será o som que faz um peixe quando salta para o ar, Splash, ou o barulho do corpo do professor Travessas quando se atira para as águas escuras da piscina. Se ao menos a mãe chegasse. Ou talvez tenha chegado e seja a voz dela a repetir junto ao ouvido o seu nome secreto.
Etiquetas: crónicas do i
1 Comentários:
Arrepiei-me...e não foi do fundo azul da piscina. È muito bom, muito doloroso também.
~CC~
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