O automóvel da senhora Morel e o espírito puro.
Naquele
mês de Fevereiro ela tinha 21 anos e ensinava Filosofia numa cidade a duzentos
quilómetros de Paris. Tinha um namorado especial. Um sedutor obsessivo e serial
que conquistava as mulheres com a elegância do verbo e a fogosidade do seu
espírito. Tinham feito um pacto, cuja face pública viria a ser o compromisso de
transparência mútua, mas que incluía alíneas não reveladas, como a de que quase
tudo, no relacionamento com as outras pessoas, lhes era permitido. Viviam em
quartos de hotel, tinham pouco dinheiro mas sentiam-se mais afortunados que os ricos,
que detestavam.
Rodeavam-se
de pessoas amigas, algumas íntimas. Eram, belas e raras, desde a forma de
tratamento aos estilos de vida, ferozmente individualistas. Entre elas estava
Pierre Guille, a quem ela chamava Pagniez. Era dois anos mais velho, colega do
namorado e mantinha uma relação especial com uma mulher casada, Madame Morel ou
Lemaire, como ela viria a designá-la nos pseudónimos ficcionais das suas memórias.
Madame Morel tinha uma casa no Boulevard Raspail, onde havia sempre um quarto
para Pagniez. Era argentina de nascimento, alegre e requintada, “tudo nela
mexia sem que nunca parecesse agitada”. O marido, médico, operara milhares de
pessoas durante a guerra. Depois, tinha-se sepultado vivo num quarto da casa e,
tal como os filhos, parecia apreciar e conviver bem com Pagniez. Madame Morel
tinha um carro, bem pouco frequente na época, que Pagniez guiava habitualmente.
Ela adorava viajar. Pagniez já a tinha levado a Tours e aos domingos passeavam
pelas margens do Marne e nos bosques de Fosse-Repose. Ela impressionava-se com
“a fenda de luz que os faróis rasgam no coração da mata”, sobretudo quando
pensavam nisso, ao fim do dia, frente a dois Bronx, num bar de Montparnasse.
Em
Fevereiro, Pagniez teve uns dias de férias em que aproveitou para visitar a
família, no Sul. Como Madame Morel não podia deixar o marido durante os dez
dias que duraria a viagem, Pagniez convidou-a. E ela aceitou.
Estava
frio mas quase nunca choveu. Pararam em Lyon, onde jantou com uns primos que se
escandalizaram com o facto de ela viajar com um rapaz. Visitou uma fábrica de
lâmpadas eléctricas e percebeu pela primeira vez a miséria insalubre e a
monotonia da condição operária. E depois rumaram à Provença. Viu, em tão pouco
tempo, coisas que julgava tão distantes. Sentiu-se como Proust que, quando
andou de carro pela primeira vez, disse nunca saber se estava du côté de
Guermantes ou du côté de Swann. Arles e as fileiras de ciprestes inclinados
pelo mistral, as ruas estreitas de Uzès, em cuja torre ondulava um pavilhão
bizarro, “a secura e o cheiro das charnecas junto à ponte do Gard”, Laguiole e
o homem que lhe estendia a faca com a marca da abelha, Avignon entrevista da
margem esquerda do Ródano, tremendo sob um sol glorioso.
Ela
tinha um pequeno mal. Não bem uma doença. Um problema. Que surgira algum tempo
depois de ter deixado de ser um espírito puro, quando “o coração, a cabeça e a
carne deixaram de estar juntos em grande festa”. Talvez tivesse a ver com o
afastamento físico do namorado. Ou com o entusiasmo excessivo dele pela
filosofia. E pela literatura. Quando se viam, ao fim de semana, logo em
Austerlitz ou em Saint-Pierre-des-Corps, ele pegava-lhe na mão e dizia: “Tenho
uma nova teoria”. Mas era incapaz de entrar,“em pleno dia”, num quarto de
hotel, ou de perceber que ela sentia agora algo que era mais do que a “fome, a
sede ou o sono, uma dor que tecia sobre a sua pele uma túnica envenenada”.
Repugnava-lhe o seu corpo “suplicante”. No comboio Tours-Paris “uma mão anónima
despertava-lhe ao longo da perna uma perturbação que lhe desagradava
profundamente”.
Nesses
dias, na Provença, esteve bem. Dormiam em hotéis modestos, onde crepitava um
fogo nas lareiras e um gato castrado ronronava. Em Baux, na Reine Jeanne, com a
cozinha à vista, tiveram uma refeição de luxo com um vinho de que nunca
esqueceu o nome: Mas de la Dame.
Quando
voltou a Paris, ao namorado e a Madame Morel, Pagniez estava de novo a uma
imensa distância. Ela entristeceu-se e concluiu que “a felicidade tem por vezes
as suas asperezas, e que essa era a lição do regresso”.
Quase
trinta anos depois escreveu sobre isso. Mais tarde ainda, numa entrevista ao
seu biógrafo admitiu que tinha dormido com Pagniez, nessa viagem. Todas as
noites.
- Disse a Sartre? – perguntou o biógrafo.
- Não era preciso – retorquiu Simone. Ele sabia.
- Disse a Sartre? – perguntou o biógrafo.
- Não era preciso – retorquiu Simone. Ele sabia.
A Força da Idade, Simone de Beauvoir, 1960,
ed. Difel
Etiquetas: 6 de outubro, Crónica do i
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