04 fevereiro 2013

A Luz de Annemarie Schwarzenbach





Mas até nos tempos mais sombrios temos o direito de esperar ver alguma luz, e é bem possível que essa luz não venha tanto das teorias e conceitos, como da chama incerta, vacilante e muitas vezes ténue, que alguns homens e mulheres conseguem alimentar em quase todas as circunstâncias e projectar em todo o tempo que lhes foi dado viver neste mundo.
 Hannah Arendt

O que caracteriza os tempos actuais, tal como os vivemos neste país, é a consciência agudíssima de que são tempos de viragem.
Durante algum tempo o sistema económico mundial escondeu as suas características de exploração dos assalariados pelos detentores do capital , de predação dos bens naturais, de divisão internacional do trabalho. Esta terminologia era utilizada pelos revolucionários e representava um estado de consciência  pré insurreccional. Um léxico foi inventado para ocultar a realidade. Os trabalhadores passaram a ser designados como colaboradores. Os exploradores foram promovidos a empreendedores. Com a derrota das revoluções e o descrédito dos revolucionários,  o sistema passou a mundial e deixou de ter adjectivos e história. Um sistema ahistórico, pós racional, decorrendo molemente numa democracia anestesiada,  onde a sempre glorificada participação democrática se resume à comédia de eleger um grupo de patifes que decreta leis para benefício próprio. O ópio do povo era o crescimento, as mordomias do estado social, as férias na Quarteira, as bolsas, os estágios, as novas oportunidades. Os desgraçados que alimentaram este sistema, esse imenso exército de gente simples e respeitadora, viu-se de repente como devedora. Os agiotas e os correctores pedem-lhes mais um esforço. Os mesmos de sempre estão a reconfigurar o Estado e a cumprir o programa oculto dos exploradores em nome da necessidade. A última razão de cada medida é o deficit, o pagamento da dívida, dos juros da dívida. Milhares de pessoas ficaram sem trabalho. Num país sem oportunidades os melhores emigram e os lugares que restam são rateados pelas famílias dos patrícios, despudoradamente.
Estranhamente, não há nem revolta nem revolução.
Annemarie Schwarzenbach nasceu em Zurique em 1908 e morreu com 34 anos, depois de uma queda de bicicleta. Morreu jovem, mais jovem do que alguns que lêem estas crónicas. E permaneceu assim, na nossa imaginação. Jovem, linda e andrógina, com casacos de corte masculino, calças de amazona ou apertadas nos tornozelos, cabelo curto na nuca e camisolas pretas de gola alta. Licenciada em História, foi arqueóloga, jornalista, fotógrafa, viajante, publicista, escreveu guias de viagem, romances, peças de teatro, contos, mais de 300 artigos em jornais suíços, poemas, diários de viagem. O fundo da Biblioteca nacional Suíça guarda mais de 5.000 negativos, através dos quais é possível traçar os roteiros dos seus périplos, na Ásia, em África, nos Estados Unidos. Um dos livros que escreveu foi editado em Portugal, antes do CCB lhe dedicar uma pequena exposição, em 2010. Chama-se Morte na Pérsia e é de uma leitura abismal, permanentemente  atravessada pelo  sopro da morte, pelo abraço gelado dos anjos do Damavand.  O Damavand é uma grande montanha do sul do mar Cáspio, um brutal cone vulcânico liso, um teto do mundo nos seus mais de 5.000 metros, o  ponto mais alto da cordilheira Alborz. O vale do Lar desce do Davamand para o litoral Cáspio. Mas a descrição da sua travessia é alucinatória e nocturna, uma experiência que um humano só pode levar a cabo em luta com um anjo que permanentemente o atrai e empurra do seu território.
Antes da Pérsia, Annemarie esteve em Moscovo, no primeiro Congresso da União dos Escritores Soviéticos. Acompanhava Klaus Mann, um dos filhos de Thomas Mann, e uma amizade que duraria toda a sua vida atribulada. Depois atravessou a Pérsia, os vales sem nome e o vale de Lar , os planaltos atravessados por sombras de nómadas lutando pela sobrevivência, muito próximos da terra e da água, dos rios que de dia são rápidos rios de montanha e de noite são espelhos de prata parados, reflectindo o Inferno. Ao ver os deserdados, “os nómadas das  montanhas Bahktiari, os pastores, os criadores de cavalo da estepe turcomana, os pescadores de esturjão, os caravaneiros, os motoristas dos camiões e os lavadores de tapetes”,  ela interrogou-se: como é que as ideias do Norte, a propaganda comunista, não tinha passado para um país afinal tão próximo?  Alguém lhe disse:
- É impossível. Estão tão sós que nem sequer se apercebem da sua miséria. Acreditam que Deus os elegeu, um a um, para a infelicidade.
Annemarie era um ser mitológico e ao mesmo tempo violentamente moderno. Viveu a ascensão do nazismo e o começo da guerra. A grande depressão e o início da América rooseveltiana. A esperança do comunismo e os processos de Moscovo. No Turquemenestão foi expulsa de uma escavação  depois de uma paixão inconveniente com a arqueóloga Ria Hackin. Ella Maillart rompeu com ela em Cabul, apavorada com a dependência opióide. Carson Mc Cullers dedicou-lhe Reflexos nuns Olhos de Oiro. 
E no entanto, entre as pragas dos muleteiros, descendo as ravinas calcinadas de vales sem nome, é nela que penso, quando procuro alguém que possa projectar alguma luz sobre os nossos dias.

Morte na Pérsia, Annemarie Schwarzenbach, Tinta da China, 2008 e 2010

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1 Comentários:

Blogger fallorca disse...

Boa, Luís

segunda-feira, fevereiro 04, 2013  

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