A Luz de Annemarie Schwarzenbach
Mas até nos tempos mais sombrios temos o direito de esperar ver alguma luz, e é bem possível que essa luz não venha tanto das teorias e conceitos, como da chama incerta, vacilante e muitas vezes ténue, que alguns homens e mulheres conseguem alimentar em quase todas as circunstâncias e projectar em todo o tempo que lhes foi dado viver neste mundo.
Hannah Arendt
O que caracteriza os tempos actuais, tal como os vivemos
neste país, é a consciência agudíssima de que são tempos de viragem.
Durante algum tempo o sistema económico mundial escondeu as
suas características de exploração dos assalariados pelos detentores do capital
, de predação dos bens naturais, de divisão internacional do trabalho. Esta
terminologia era utilizada pelos revolucionários e representava um estado de consciência pré insurreccional. Um léxico foi
inventado para ocultar a realidade. Os trabalhadores passaram a ser designados
como colaboradores. Os exploradores foram promovidos a empreendedores. Com a
derrota das revoluções e o descrédito dos revolucionários, o sistema passou a mundial e deixou de
ter adjectivos e história. Um sistema ahistórico, pós racional, decorrendo
molemente numa democracia anestesiada,
onde a sempre glorificada participação democrática se resume à comédia
de eleger um grupo de patifes que decreta leis para benefício próprio. O ópio
do povo era o crescimento, as mordomias do estado social, as férias na
Quarteira, as bolsas, os estágios, as novas oportunidades. Os desgraçados que
alimentaram este sistema, esse imenso exército de gente simples e respeitadora,
viu-se de repente como devedora. Os agiotas e os correctores pedem-lhes mais um
esforço. Os mesmos de sempre estão a reconfigurar o Estado e a cumprir o
programa oculto dos exploradores em nome da necessidade. A última razão de cada
medida é o deficit, o pagamento da dívida, dos juros da dívida. Milhares de
pessoas ficaram sem trabalho. Num país sem oportunidades os melhores emigram e
os lugares que restam são rateados pelas famílias dos patrícios,
despudoradamente.
Estranhamente, não há nem revolta nem revolução.
Annemarie Schwarzenbach nasceu em Zurique em 1908 e morreu
com 34 anos, depois de uma queda de bicicleta. Morreu jovem, mais jovem do que
alguns que lêem estas crónicas. E permaneceu assim, na nossa imaginação. Jovem,
linda e andrógina, com casacos de corte masculino, calças de amazona ou
apertadas nos tornozelos, cabelo curto na nuca e camisolas pretas de gola alta.
Licenciada em História, foi arqueóloga, jornalista, fotógrafa, viajante,
publicista, escreveu guias de viagem, romances, peças de teatro, contos, mais
de 300 artigos em jornais suíços, poemas, diários de viagem. O fundo da
Biblioteca nacional Suíça guarda mais de 5.000 negativos, através dos quais é
possível traçar os roteiros dos seus périplos, na Ásia, em África, nos Estados
Unidos. Um dos livros que escreveu foi editado em Portugal, antes do CCB lhe
dedicar uma pequena exposição, em 2010. Chama-se Morte na Pérsia e é de uma
leitura abismal, permanentemente atravessada pelo
sopro da morte, pelo abraço gelado dos anjos do Damavand. O Damavand é uma grande montanha do sul
do mar Cáspio, um brutal cone vulcânico liso, um teto do mundo nos seus mais de
5.000 metros, o ponto mais alto da
cordilheira Alborz. O vale do Lar desce do Davamand para o litoral Cáspio. Mas
a descrição da sua travessia é alucinatória e nocturna, uma experiência que um
humano só pode levar a cabo em luta com um anjo que permanentemente o atrai e
empurra do seu território.
Antes da Pérsia, Annemarie esteve em Moscovo, no primeiro
Congresso da União dos Escritores Soviéticos. Acompanhava Klaus Mann, um dos
filhos de Thomas Mann, e uma amizade que duraria toda a sua vida atribulada.
Depois atravessou a Pérsia, os vales sem nome e o vale de Lar , os planaltos
atravessados por sombras de nómadas lutando pela sobrevivência, muito próximos
da terra e da água, dos rios que de dia são rápidos rios de montanha e de noite
são espelhos de prata parados, reflectindo o Inferno. Ao ver os deserdados, “os
nómadas das montanhas Bahktiari,
os pastores, os criadores de cavalo da estepe turcomana, os pescadores de
esturjão, os caravaneiros, os motoristas dos camiões e os lavadores de tapetes”,
ela interrogou-se: como é que as
ideias do Norte, a propaganda comunista, não tinha passado para um país afinal
tão próximo? Alguém lhe disse:
- É impossível. Estão tão sós que nem sequer se apercebem da
sua miséria. Acreditam que Deus os elegeu, um a um, para a infelicidade.
Annemarie era um ser mitológico e ao mesmo tempo violentamente
moderno. Viveu a ascensão do nazismo e o começo da guerra. A grande depressão e
o início da América rooseveltiana. A esperança do comunismo e os processos de
Moscovo. No Turquemenestão foi expulsa de uma escavação depois de uma paixão inconveniente com a
arqueóloga Ria Hackin. Ella Maillart rompeu com ela em Cabul, apavorada com a dependência
opióide. Carson Mc Cullers dedicou-lhe Reflexos nuns Olhos de Oiro.
E no entanto, entre as pragas dos muleteiros, descendo as
ravinas calcinadas de vales sem nome, é nela que penso, quando procuro alguém
que possa projectar alguma luz sobre os nossos dias.
Morte na Pérsia, Annemarie Schwarzenbach, Tinta da China,
2008 e 2010
Etiquetas: crónica do i de 2 de fevereiro de 2013
1 Comentários:
Boa, Luís
Enviar um comentário
Subscrever Enviar feedback [Atom]
<< Página inicial