A mochila de Austerlitz, ou Wittgenstein, ou António
Não pude assim apreciar inteiramente esse lugar extraordinário. Sem que o soubesse, tinha sido discutido, apenas alguns anos antes, o seu futuro. Poderia ter sido demolida, cumprindo assim uma das maldições congénitas das obras ultradimensionadas, a que Sebald chamou a sua “existência futura enquanto ruína”.
Na segunda metade da década de 60 do século passado, quando, vindo de Inglaterra, o narrador sebaldiano visitava a Bélgica, entrou em Antuérpia pela Estação Central e logo aí foi assaltado por uma indisposição que não o abandonaria durante toda a sua estada. Deambulou pelo centro, soletrando o nome das ruas e, já de noite, visitou o Nocturama, uma exposição de animais nocturnos, que era a novidade desse ano de 1967. Depois entrou no átrio da estação e sentiu aquele momento de grandeza que Leopoldo II encomendara ao arquitecto Louis Delacenserie e que era motivado pela elevação da cúpula a mais de 60 metros, a mistura de estilos, a posição eminente e central do enorme relógio no topo da escadaria e, embora ainda não o soubesse, pela visão profética do incêndio da congénere de Lucerna, que o rei indicara como modelo e fonte de inspiração a Delacenserie. Senti o mesmo mal-estar combinado com a melancolia que as estações de caminho-de-ferro sempre me provocaram, a angústia e a excitação de partir para norte, paralela à suspeita de que o esplendor novecentista da Bélgica crescera apoiado na pilhagem colonial que a estátua de bronze do negro com o dromedário que encantara o narrador sebaldiano parecia confirmar.
O facto de ter visitado Antuérpia antes de 2001, ano da publicação de “Austerlitz”, impediu-me de perceber inteiramente a Estação Central. Ali, na Salle des Pas Perdus da Estação Central, na sala simétrica que naquele ano era utilizada como cantina do pessoal, e depois na grande nave de 185 metros de comprimento e coberta pela estrutura de aço e vidro criada por Clement van Bogaert, antes de Sebald, podia apenas contar com as minhas emoções.
Não vi Jacques Austerlitz, que 30 anos antes parecera a Sebald um rapaz de cabelo claro ondulado, botas de montanha, jeans desbotadas, casaco clássico e fora de moda e uma eterna mochila wittgensteiniana. Um saco castanho, com quatro presilhas de cabedal, duas para o encerrar e duas laterais para atenuar a deformidade, semelhante ao que usava nessa altura e alguns anos depois António Ribeiro da Cunha, um amigo que se refugiou em minha casa para fugir da polícia, ler alto no corredor os textos da Internacional Letrista e da London Psychogeographical Association que recebera clandestinamente, e preparar um exílio que dura até à actualidade. António, como Ludwig Wittgenstein, como Austerlitz, mas sem os conhecer, andava sempre com essa mochila. Carregava os seus cadernos, onde tomava notas preciosas, os textos referidos dos companheiros de Guy Debord editados em policopiador, uma peça de roupa, uma escova de dentes, uma maçã. Tinha-a quando foi preso na cidade universitária, ao entregar inadvertidamente a dois esbirros da polícia política uma tarjeta que convocava uma reunião de apoio às lutas coloniais. Conseguiu reavê-la três meses depois, ao sair em liberdade sob fiança. Teve-a sempre consigo no julgamento do Tribunal Plenário, no jantar em que celebrámos a absolvição, nos meses seguintes em que fingiu a enormidade que era fazer um curso de Medicina nos anos de chumbo do marcelismo e depois na viagem que fez sozinho a Genebra. Austerlitz, ou Wittgenstein, ou António disseram que compraram a mochila castanha em Charing Cross por dez xelins, num leilão de material do exército sueco.
Não pude ouvir a pormenorizada descrição da sua arquitectura ecléctica, o momento em que, já em Liège, num café que talvez fosse o Café des Esperances, à vista dos altos fornos das fundições e das colunas de fumo que escureciam o céu, Austerlitz teria explicado demoradamente que os capitalistas filantropos do século xix, ao tentarem aplicar os seus projectos de cidade operária, acabaram por criar de facto as camaratas. Disse Austerlitz, o narrador sebaldiano lembrou-se sempre, e eu próprio, depois de ter lido nunca mais esqueci, embora nesse ano ainda não fosse capaz desta formulação de síntese: “Os nossos melhores planos resultam sempre no seu contrário, uma vez postos em prática.”
Etiquetas: A bicicleta de Russel, crónicas do i
0 Comentários:
Enviar um comentário
Subscrever Enviar feedback [Atom]
<< Página inicial