29 julho 2013

Deste-lhe uns versos, canalha



Não sei como é o espectador tipo de François Ozon, o realizador francês que, por estar a dirigir um filme por ano, vai sendo considerado o Woody Allen europeu. Mas logo no trailer que anunciava “Dans la Maison”, o filme de 2012, se insinuava um duplo sentimento. O verso: o prazer de encontrar um cinema culto – misturando Flaubert, antes de tudo, com um casal em que ele é professor de Literatura e ela galerista de arte contemporânea e a iniciação na escrita de um rapaz talentoso. Mas ao mesmo tempo, um mal-estar aflora à superfície como o verme na rosa. Este reverso, que surge como uma ameaça suspensa, é-nos dado por sinais de decomposição que se acumulam. A relação pedagógica descontrola-se, as ligações dentro dos dois casais, Germain-Jeanne e o casal Artola, deterioram-se, e a amizade entre Claude Garcia e Rapha filho, o jovem Artola, quebra-se com violência. Neste momento da acção, os que, ingenuamente, pensaram ir à matinée do cinema francês, começam a mexer-se incomodados nas cadeiras.

Claude Garcia, de 16 anos, é aluno do Liceu Gustave Flaubert. A mãe abandonou a família e ele toma conta do pai, paraplégico e alcoólico. Irrompe no filme e na vida das duas famílias como o anjo de “Teorema”. Mas a analogia com o filme de Pasolini fica por aqui. Revisto hoje – é com pesar que o digo – “Teorema” é um filme meio pateta, que desperta a tolerância à beira da irritação. Baseado na peça “O Rapaz da Última Fila”, do dramaturgo espanhol Juan Mayorga, o filme de Ozon levanta, paradoxalmente, mais questões que “Teorema”. Mayorga é o mais representado dos autores espanhóis e viu peças suas levadas à cena em Coimbra, pela Escola da Noite, e em Lisboa, onde os Artistas Unidos estrearam “Hamelin” em 2007, e o ano passado Jorge Silva Melo encenou “Este Rapaz”, na Escola Politécnica. Foi editado na pequena colecção da Cotovia. A versão de Ozon foi livre, e nos créditos a referência a Mayorga é discreta, o que, no processo de autorias e adaptações pode ser vantajoso. O próprio dramaturgo disse que já tinha contado a história e era agora a vez do realizador. Mas a solidez do argumento dá a Ozon a possibilidade de explorar a vertigem sem se perder e finalmente de se retrair sem parecer conformista.

O filme tem vários motivos de regozijo e vou referir apenas alguns que, como leitor comum, me surgiram inicialmente. O primeiro resulta de se passar à sombra tutelar de Flaubert. A sequência inicial mostra o liceu, moderno mas austero, no primeiro dia de aulas, quando o regulamento republicano instaurou a obrigatoriedade do uniforme “inglês”. A aceleração da imagem e depois a exibição rápida de centenas de faces em tamanho retrato BI dão a ideia de que se vai contar uma entre as histórias possíveis, aquela que o olhar particular do narrador seleccionou. Seguem-se os personagens. E lembramo--nos da réplica que Flaubert deu a Georges Sand quando ela lhe explicava o fracasso de “A Educação Sentimental” pela dificuldade dos leitores encontrarem “quem admirar”, de Fréderic Moreau a Mme Arnoux. Flaubert retorquiu:
“Não acho que tenha o direito de julgar os meus personagens dessa forma.”

Acabado o filme, percebemos que estivemos com personagens de Flaubert. Teríamos gostado que Germain se tivesse comportado de outra forma, que Jeanne lhe tivesse dado outra oportunidade, que Claude Garcia fosse menos determinado, aparentemente desprovido de piedade, que os Rapha não fossem tão... desportistas, que o director não fosse a besta para a qual tendem os reitores. Mas “não temos o direito de julgar os personagens” dessa forma. Assistimos a cenas de um romance realista.

Dos personagens flaubertianos de “Dentro de Casa”, o que mais me toca é, evidentemente, Esther Artola, interpretado por Emmanuelle Seigner, uma das mulheres mais bonitas do mundo, que tem no fundo dos olhos a cor dos sofás de “Casa e Jardim”. Esther é a dona de casa, “a mulher da classe média”, nas palavras sarcásticas de Claude. Foi por Esther que Claude passou longas horas no jardim em frente, até quase ser surpreendido pelo pai Artola. Foi por ela que se aventurou a bater à porta. É por ela que escreve, embora Germain, Jeanne e nós próprios ainda não o saibamos. Na primeira redacção diz, e nós ouvimos, simultaneamente na voz de Germain e no silêncio de Jeanne: “... estava para voltar (ao quarto onde finge estudar Matemática com Rapha) quando um cheiro me chamou a atenção: o inconfundível cheiro da mulher da classe média. [...] A sua voz era tal e qual como tinha previsto. Onde ensinarão estas mulheres a falar?”

E mais tarde, quando através de um estratagema a encontra sozinha em casa, chama-lhe “a mulher que mais se aborrece”. Flaubert tinha escrito de uma mulher assim: “A sua vida era tão fria como uma mansarda virada para norte, e o tédio, lento como a aranha, ia tecendo a sua teia nos lugares sombrios do seu coração.” O rapaz insinua-se na vida dela. Bebe Coca-Cola no jardim, faz uma lista dos medicamentos que ela toma, como Fitzgerald. Comenta as “aguarelas de Klee” no hall. Vê-a dormir, os pés pequeninos, um sorriso. Um dia em que a vê atormentada passa-lhe um poema para a mão. Ela não percebe: “Nem sequer a chuva baila tão descalça.” Tudo o resto percebera, e os Rapha, pai e filho, dariam cabo dele, se percebessem também. Mas aquele verso não.
“Canalha”, grita o professor. “Deste-lhe um poema. A essa mulher ninguém dedicou um poema durante toda a vida.”

Germain tenta parar Claude. Jeanne tenta parar Germain. Mas irão a tempo? Os personagens autonomizaram-se. Cada um deles procura a sua verdade. Ensarilharam-se os laços que ligam a vida de alguns à literatura, e não será, de certa forma no fim da sua vida, o homem cujo dilema é ainda entre Tolstoi e Dostoievsky que terá força para os separar.


Dentro de Casa, François Ozon, 2012
O rapaz da última fila e outros, Juan Mayorga, Livrinhos de Teatro, 2008, Cotovia
The Man Behind Bovary, James Wood, The New York Times, Sunday Book Review, April 16, 2006




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1 Comentários:

Blogger henedina disse...

"O fracasso de “A Educação Sentimental”" não é não admirarem as personagens" é que "as mulheres gostam de ser amadas com reserva".

quarta-feira, julho 31, 2013  

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