O ser irradiante que avança
Francis Alys
O ser irradiante que, com as primeiras luzes da manhã, avançou para a casa onde o jovem Alex , o narrador de Ancient Light, não conseguia adormecer, já se extinguiu. Ou brilha a espaços, e quando o faz é avassalador, e engana tanto, que o velho Alex não sabe se é o passado que o interpela ou se haverá ainda uma nova oportunidade para ele, e se aquele é o brilho do futuro.
A memória é uma coisa estranha. Vem com os cheiros, com as estações do ano, primavera, outono, outra vez primavera, agora o verão. Primavera, como quando, no corredor de uma casa das Ilhas Britânicas, o rapaz viu Mrs Gray nua. Nua e não despida, num espelho que reflectia um psiché, e através do qual ela surgiu, "a shadowing of mosse mauve". Verão, como no lugar de Cotter, no bosque das avelaneiras, onde decorreram os encontros que reuniram este par fora do comum.
E como vem a hesitante memória ? Com pormenores, quem diria. Convictos pormenores de cenas que nem sequer ocorreram. Pessoas que não estavam presentes, nessa altura, não disseram as palavras que lhes atribuímos, nunca tiveram as camisas com que os vestimos, o laço com que apertaram o cabelo, nem mesmo aquele corte de cabelo. Embora alguns detalhes tenham de ser reais: a mecha de cabelo rebelde atrás da orelha de Mrs Gray, a marca de cigarros que fumava, o modo displicente como conduzia a velha carrinha, a forma como empurrou o jovem Alex naquele último encontro em casa dos Gray. E vem com a luz. A "luz antiga"," a luz arcaica". A luz que revela as cores da infância, do fim da infância, quando o mundo dos adultos começava a ser revelado, e, no caso excepcional de Alex, através de um amor secreto e transgeracional. Cores. As cores do dia, do bosque, do lugar de Cotter, da praia de Rossmore, dos corpos, do corpo desvendado da amante
" ...cinzento, naturalmente , mas um peculiar lilás acinzentado, e ferrugem, e rosa, e outro tom, difícil de nomear-chá escuro? madressilva pisada?...".
A luz antiga pode ser a escuridão de hoje. A matéria negra que envolve agora os espaços em que o quase idoso Alex se move, é a matéria dos ausentes. A malograda filha de Alex, que se perdeu nas águas de Portonevere, na Ligúria, a mãe de Alex, talvez Mrs. Gray . O narrador acredita que esses mundos fazem parte do nosso mundo, ou, como um fidalgo das pampas lhe explicou num tempo crepuscular, existem num conjunto de mundos circulares e interpenetrados, onde tudo o que poderia ter sido está a acontecer. Mas se acontece, se pode ser rememorado, é através das palavras, " do frágil outro-mundo das palavras". Este livro de John Banville é, assim, uma procura da palavra exacta, através da qual a luz antiga restaura Mrs. Gray quando tinha 35 anos e o amor insaciável do seu rapaz.
Uma noite de verão, imprevidentemente, passearam os dois no porto da vila. Mais tarde, no carro, ela ficou a ver, pelo para-brisas, as pessoas de um lado para o outro, no pontão.
- Não é extraordinário que as pessoas pareçam permanentes? - disse ela. - Como se fossem estar ali sempre.
É esta a ilusão que o livro vende, com talento, emoção, mestria.
Mas não é verdade. Nenhuma das pessoas que Mrs. Gray viu naquela noite, pode hoje ser encontrada , em nenhum ponto do cais da vila. O pontão foi destruído. Como o bosque de avelaneiras, o rio onde ela se banhou, os escombros do lugar de Cotter, a loja do optometrista, a humilde pensão dos caixeiros viajantes. Em breve Banville deixará de ser lido e a nuvem Kindle onde fui buscar este Ancient Light estará inacessível, primeiro ao meu salário, depois aos sucedâneos dos iPads. As palavras deste livro já quase não existem - poterna, mefítico, malva; buxom, aqui traduzido por rija, "esse belo e antigo adjectivo"; silken scantlings e half-slip (saiote) ; um terceiro género, "overmastering and impregnable ". As tabuletas desapareceram mais cedo do que Pessoa podia prever. E os versos também. A luz antiga brilhará uma vez ainda, insuportável, mas será a luz de Pompeia.
John Banville , Luz Antiga, 2013 Porto Editora
Anciient Light, Amazon kindle
Etiquetas: A bicicleta de Russel, crónicas do i
0 Comentários:
Enviar um comentário
Subscrever Enviar feedback [Atom]
<< Página inicial