Um texto que muda a vida
August Sander | Blinde Kinder beim Unterricht, um 1930
(...) A miúda estava sentada na mesma mesa e quando chegou a vez dela disse que um texto lhe mudara a vida. O texto era de Robert Fisk, jornalista inglês mas não ao serviço de Sua Majestade, que no Afeganistão fora apanhado por afegãos durante a invasão americana punitiva do 11-S. Fisk, sovado quase até à morte, terá escrito compreender que naqueles dias qualquer afegão matasse qualquer ocidental. A miúda, habituada a filmes de terror e a quem as Torres Gémeas soubera a pouco, achou que aquela enormidade lhe iluminara a vida e desde aí parece falar a essa luz.
A própria frase”um texto que mudou a minha vida” é assustadora. Pode a vida mudar? Pode um texto mudar uma vida? Como era a vida que umas palavras mudam? Como é agora a vida que assim mudou? Ouço sempre estas revelações com grande incomodidade e a sensação de estar a assistir a um transe a ouvir o que não devia ou a atentar contra o pudor de alguém. E também com uma sensação de culpa. A jovem a quem foi feita tamanha revelação, agita-a contra mim, como marca de uma superioridade. Porque eu que não li o texto, que não mereci a graça, continuo em pecado. Eu não mudei a minha vida. Estou ali, mais uma vez me foi contada a verdade sobre a minha existência culposa e persisto na cegueira. Sou mais uma vez o que não quer ver, o pior dos cegos, como dizia o padre da minha juventude na prédica com que obliquamente me fulminava nas aulas de Religião e Moral.
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