A que horas chega o pai?
O Bar da Praia saíu na Time Out, aos
fins de semana tem happy hour com DJ, emprega uma dúzia de empregados, todos de
preto e alguns com escola de hotelaria.
É composto por um núcleo central coberto, um avançado e uma esplanada no areal, com dois barmen,
sempre atarefados. Na esplanada encena-se um deboche. Há camas colectivas, de
dossel . Homens e mulheres de 30 anos, estendem os corpos. A dimensão e a altura
do estrado, o calor e as bebidas incitam ao abandono do corpos, ao torpor, à
sonolência. Às cinco da tarde está armado o deboche. Às seis o DJ começa a pôr
música e, vindos do nada, surgem as teenagers e os acompanhantes. Estão sempre
muito juntos e são os primeiros a dançar, com uma energia despropositada para a
temperatura ambiente e a aparentemente pequena quantidade de consumíveis
alcoólicos. As raparigas ocupam o centro do grupo e são muito parecidas umas
com as outras , de unhas Risqué pura luxúria ou 545 CS, cabelos esticados e
lábios grossos, cherry, fruity shine cherry, da Labello. Os rapazes desenham um
segundo círculo e não largam os copos de Magellan, seguros no espaço entre o
polegar e indicador, alargado como um traço evolutivo.
A praia é grande. Depois do Bar da
Praia há uma terra de ninguém. A seguir as filas dos guarda sol de palha, a
vinte euros o dia com direito a duas camas e colchão. E já na areia molhada, o espaço
dos banhistas independentes, de toalha mas sem guarda-sol, indiferentes ao
perigo dos ultra-violetas e com elevada densidade de i phones, noites perdidas e
desgostos recentes de amor. Vista da linha de rebentação a praia lembra o domingo
na Grande Jatte, com muita gente vertical olhando o mar ou o infinito, e um ar
burguês, porque acabaram as colónias de férias e os mais pobres não alcançam a
praia durante a semana. Os homens do ISN hastearam para sempre a bandeira
amarela, pastoreiam a praia e lêem os pensamentos dos banhistas ousados, repreendem-nos
com um apito solene, antes de eles
se atirarem às ondas proibidas.
Agora chega ao Bar da Praia a
mulher lindíssima e o rapaz que não cabe em si de feliz. Sabemos que é ela porque
as mesas calam-se, os outros casais nas mesas suspendem a sangria, as amêijoas
arrefecem na travessa, os pedidos são feitos em surdina a empregados distraídos.
Ela senta-se, a mulher lindíssima, com uma tatuagem enigmática no braço
direito, lábios como a Adèle Blanc Sec na BD de Tardi, mãos de dedos longos, a
pele que capturou o sol do fim de
tarde e todas as promessas do verão, as pernas intermináveis, mamas orgulhosas
e os olhos…ninguém sabe dizer como são os olhos das mulheres lindíssimas e
ninguém teve coragem de a olhar nos olhos, as mulheres mais interessadas em
medir o busto, a curva das ancas, os tornozelos, as mamas orgulhosas, e os
homens porque são cautos ou cobardes. O areal, a praia, a ideia de praia, o próprio
verão vivem da cobardia e do medo dos homens, criadores da bandeira amarela, da
happy hour, do biquíni brasileiro, da depilação, do protector solar, do ténis
de praia.
Nas mesas, homens e mulheres
retomam as conversas. Tratam-se com cerimónia. Têm pouco em comum. São velhos e
parecem adolescentes num primeiro encontro. São amigos que rememoram um passado
escolar afinal não assim tão longínquo, mais isso do que dois apaixonados, são
um par destinado ao sofrimento, um homem com a doença de querer ser amado, um velho
que entristeceu sem remissão, outro homem com o ciúme entalado no esófago.
Na primeira fila dos chapéus
algumas mulheres falam, suavemente. São as mães e dão ordens bondosas aos que
nunca desobedeceram: “Vai buscar o capacete do teu irmão”, “Traz a toalha”, “Querem
bolos?”, “Onde há bom mel é na loja do Artur”. Ah, estas vozes. Há tantos anos que governam um mundo
íntimo, inquebrável, que parece perdido mas volta, todos os anos, nem que seja
por um breve momento como este.
Etiquetas: Crónica do i
2 Comentários:
Muito bom. Muito bom, mesmo! Grande poder de análise, grande "visão"...
Encho o olhar com coisas assim. E depois venho aqui e leio-as.
~CC~
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