O cão de Saint-Just
A historiadora Raquel
Varela, num post do blog 5dias a que chamou O cão de Hitler, considerou que signatários
de uma petição contra o abate de um cão que atacou mortalmente uma criança,
eram apoiantes “de um movimento ultra reaccionário ...que inclui a rejeição do
progresso...”. Um dias depois Daniel Oliveira, no Expresso Online, repetiu os argumentos da historiadora. Entre as tomadas de posição da semana uma, assinada por Mário de Carvalho, foi especialmente esclarecedora. Uma pérola de especismo ingénuo.
Imagino
que talvez existam religiões que acreditam num deus que criou o homem à sua
semelhança, dominando sobre os peixes do mar, e sobre as aves dos céus, e sobre
o gado, e sobre toda a terra, e sobre todo o réptil que se move sobre a terra.
E que esse deus, depois de ter criado o homem e a mulher, por essa ordem, os
abençoou e lhes disse para se multiplicarem, encherem e sujeitarem a terra. Ou que acreditam que deus criou o cavalo, a mula e o asno para serem
cavalgados, e o gado para ser comido.
Se esta é a letra dos
livros sagrados das mais populares religiões monoteístas não espanta que, por
mais que os sábios defendam um entendimento não literal dos livros, seja esta a
visão natural dos crentes.
Alguns
pensam que esta ideologia de expansão e sujeição da terra e de “tudo o que se
na terra se move” é característica dos europeus dos últimos seis séculos. Mas
se estudarmos as civilizações do passado dificilmente encontraremos um povo
que, atingido um certo grau de crescimento, não tenha invadido as terras e os
mares dos vizinhos, matado, violado pilhado e escravizado, sem hesitações e com
a soberba de quem está, afinal, a zelar por valores mais altos, frequentemente
coincidentes com o alegado bem estar da comunidade de pertença.
Que
os adeptos das religiões reveladas se vejam a si mesmos como eleitos, não me
espanta. Mas há outra raça de crentes. Os que acreditam no progresso.
Na
minha infância o progresso era inelutável. Os adeptos da nossa religião eram “progressistas”
e os outros “reaccionários”. Os reaccionários eram baixos, maciços, tinham
anéis nos dedos grossos, vestiam uniformes infantis e fingiam combater nas
matas dos subúrbios. Os progressistas eram magros, esquálidos, envoltos em
nuvens de tabaco, muito cultos por estadias forçadas em cadeias e sanatórios.
Não havia mulheres reaccionárias, embora um tio me tivesse relatado uma
manifestação das Mulheres Patriotas e me assegurasse que nas esquinas da praça
P. ainda se podia ouvir uma voz estridente que gritava: Abaixo o Amor Livre .
E
havia mulheres progressistas, lindas mulheres progressistas de rendas pretas e
bigodes, mitenes e cheiro almiscarado, que os miúdos beijavam com relutância.
Também havia as heroínas da classe operária, quase sempre do longínquo Sul e as
estudantes progressistas que só conheceram o annus mirabilis de Philip Larkin com dez anos de atraso, como é
costume no meu país, entre a edição da terceira versão de O Amante de Lady
Chatterley e o último LP dos Beatles, felizmente ainda a tempo, para mim.
Os
amigos dos meus pais tinham algumas dúvidas sobre se as pessoas eram intrinsecamente
boas ou más. Mais tarde aprendi que na direita se acreditava que, devido ao
pecado original, o ser humano era naturalmente mau. Enquanto que desde Rousseau
os optimistas sabiam que o bom selvagem era corrompido pela sociedade.
Mas
no tempo dos reaccionários e dos progressistas ambos estavam de acordo em que,
bons ou maus, os homens e as mulheres eram, sobretudo, ignorantes. Os
reaccionários argumentavam que a ignorância era tanta que a gentalha não se
encontrava preparada para a democracia. E os progressistas admitiam que talvez
fosse necessário ensinar as pessoas a ser livres. Este debate, garanto-vos, não
era apenas teórico.
Quando
os reaccionários foram apeados do poder, logo no dia seguinte, todos eram progressistas.
As manifestações de regozijo foram de uma unanimidade esmagadora. Quando os reaccionários
recuperaram o poder já pouca gente se lembrava da história. E quando ninguém se
lembrava já da história, os reaccionários começaram a chamar reaccionários aos
que se lembravam da história. E é assim que estamos hoje, João.
Esta
digressão vem a propósito dos animais. No tempo do debate de ideias os animais já
não falavam. Se alguém se lembrasse do tema caía-lhe um neo-realista em cima a
dizer que estava a desviar o povo leitor dos problemas principais. Esta imagem
é injusta, porque os neo-realistas foram gente boa e mais próxima dos animais
que qualquer outra corrente literária. Mas não há imagens justas na era da
necessidade. Quando as coisas amansaram e depois dos direitos do homem, dos
direitos da criança, dos direitos das crianças hospitalizadas, dos direitos das
mulheres, por essa ordem, houve quem falasse dos direitos dos outros animais.
Um prémio Nobel escreveu sobre o tema. Um filósofo moralista também. Mas estala
o verniz de cada vez que um cão O’Neilliano, um cão problema, entra sem licença
no poema. Floresce então o especismo mais puritano, quase sempre escudado em
valores como a justiça, a segurança ou aquilo que vale mais ou menos na frágil
balança de equilíbrios com que nos governamos. E os progressistas, meu deus,
salva-nos dos progressistas, porque eles acreditam que são parecidos contigo, omniscientes
e subtilíssimos, e como tu, não terão misericórdia com os répteis levantados do
chão.
Etiquetas: A bicicleta de Russel, Crónica do i
9 Comentários:
Este comentário foi removido pelo autor.
Luís, o meu aplauso.
Obviamente, gostei, não te demito.
Deus te ajude, Luís, é a única coisa que se me oferece dizer (com todo o respeito que sabes que tenho por ti)
quase, genial.
Quando um macaco escrever a Odisseia deixo de ser especista (talvez ingénuo). Advogo o respeito por todos os seres vivos, em particular dos mamíferos.Repugna-me fazer sofrer os animais, mas lá que sou especista sou (talvez ingénuo). As tretas do moralista de serviço Singer não me dizem nada. Tal como vem na Odisseia o Homem é o centro do mundo - do nosso mundo.
Alberto
Até agora, a "defesa do cão Zico" podia ter duas explicações: absoluta ingenuidade infantil(óide), ou essa espantosa misantropia travestida que compreensivelmente alastra por aí. O autor do texto, com toda a sua cultura e sagacidade, consegue desencantar uma 3ª via, plena de um niilismo incrível e manipulador. Parabéns!
Finalmente!, um artigo muito bem escrito que não é a cópia, da cópia, da cópia, da tradução do argumento de x, y e z.
Fez-me pensar, pesquisar, ler e aprender, relacionando o título com o artigo também.
Os meus parabéns, pela inteligência e ponderação com que desenvolveu este trabalho.
os falsos progressistas não gostam que falem deles assim...
só gente grande pode escrever assim!
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