O par espantoso
Fotografia: DrGica
Javier Marias fala disto em Todas
as Almas. O narrador oxoneano está no museu Ashmolean, vindo da Tayloreana,
num sábado desses dois anos que iriam marcar a sua vida e obra de professor. No
átrio do museu, quase deserto como acontecia habitualmente antes da remodelação
de 2009, cruza-se acidentalmente com Clare Bayes, a mulher que ele gostaria de
encontrar mais vezes e que há algum tempo lhe impõe um afastamento
incompreensível. Clare está acompanhada pelo velho pai e pelo seu filho, Eric,
de sete anos. O narrador persegue-os furtivamente, pelo interior do museu,
perfilado atrás de colunas, ignorando um gesto irritado com que, junto dos
Pré-Rafaelitas, ela o intima a desaparecer. Mas vê a cara do velho e do menino
e nota a incrível semelhança entre ambos e entre eles e Clare Bayes, a mulher
que ele” tanto tinha beijado” ( aliás muito menos do que pretendia). Então
escreve: “ há ideias que podem ou não associar-se, mas se se associam provocam
espanto: a ideia da criança e a ideia do beijo, a ideia do velho e a ideia do
beijo, a ideia da criança e a ideia do velho. O par espantoso do velho é a
criança. O par espantoso da criança é o velho, o do beijo é a criança e o da
criança o beijo, o do beijo o velho e o do velho o beijo, o meu beijo
...(...) O beijo dos três.”
O par espantoso de David Lynch é um
ser que não chega a levantar-se das trevas, num muro das traseiras de um café
de bairro, em Mulholland Drive.
O par espantoso de Florence Welch é
a máquina.
O par espantoso de António Barreto
é Mefistófeles, de cartão, em tamanho natural, a fazer a campanha “Regresso aos
Mercados “do Pingo Doce. Podem ou não associar-se, mas se se associam, destroem
a Fundação Francisco Manuel dos Santos.
O par espantoso de The go-between,
o romance de L.P. Hartley, é a frase solene de abertura: “The past is a foreign
land”. E, no filme de Joseph Losey, a imagem do jovem Leo a correr pela vereda
deserta ao descobrir a tortura da carne, como dizia Tolstoi. Enquanto corre sem
destino o rapaz grita: Delenda est Belladonna. Belladona é Lady
Marion. Beladona é o veneno. A linda Marion, o amor nos celeiros como um veneno
oculto. O par espantoso da flor é a sexualidade, que dependendo da dose, é
medicina ou tóxico. O par do sexo entrevisto é Marion. E Leo está provando
todos.
O outro par da beladona, mais
benigno, é a camomila .
O par espantoso da mulher que passa
sem cessar, entre o polegar e o indicador, o debrum dos lençóis e outros
tecidos de algodão, é Dora, a paciente de Freud .
O par espantoso de Walter Benjamin
são os cumes brancos dos Pirinéus.
O par espantoso de A. é o seu filho
morto.
O par espantoso da Mité é o Galvão,
que namorou seis meses com ela há vinte anos, antes de morrer num terrível
acidente.
O par espantoso de Lolita é a mãe
da Lolita.
O par de Dawkins é deus (pouco
Poderoso) e o do santo Papa é o preservativo lubrificado Meme.
O cão de Hitler pode ou não
associar-se ao epigrama de Mandelstam a Stalin. Mas se se associa, os que
evocam o cão de Hitler provocam espanto.
O par espantoso de Luxo de Banho é
Ach Brito, a chaminé alta junto à rua do Cónego Ferreira Pinto, à Boavista.
Dias Loureiro, Cavaco, Rosalina e
uma estrada no Brasil ou o pranto de Miss Cabo Verde, bolseira numa Escola
profissional da Lousã. Podem não se associar. Mas associam-se .
O par espantoso de Joaquim Manuel
Magalhães é Cavafys.
O de Barthes é a mãe, os eléctricos
e a madeleine de Proust.
O par espantoso de Orson Welles é
Kane ou o trenó Rosebud ou o Terceiro Homem, o nível mais baixo da cidade de
Viena.
O par espantoso de Hanna Arendt é
Heidegger e a banalidade do Mal.
O par espantoso do senhor Lucas era
o seu carro Anglia, um pequeno mundo. O par espantoso de Frida Khalo é uma
coluna quebrada. O par espantoso do meu querido Mestre era a palavra “
justamente”, justamente dita com a elegância com que António o fazia. O par
espantoso da cidade de Pinhel, quando surge ao longe na estrada de Valbom, é a
maldição que Juan Goitysolo lança às costas da Pátria. O par espantoso da Lena
é o ginásio A Felicidade do Corpo. O par espantoso da Dona Hermínia era um
cágado míope, que desaparecia debaixo das camas, em perpétua hibernação. O par
espantoso da Ananda é o trabalho da dor. O par espantoso de Pauline Réage é o padeiro
de Santa Clara a Velha, o beijo de Pauline, a chave na porta, a surpresa do
padeiro, o beijo do padeiro, o meu beijo…(…) O beijo dos três.
Todas as Almas, Javier Marias, D. Quixote
Etiquetas: A bicicleta de Russel, crónicas do i
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